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A Redação do ENEM


O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) completou em 2019 vinte e um anos de existência. Segundo dados do Ministério da Educação (MEC), seis milhões de estudantes fizeram as inscrições para a edição deste ano. Um número que não impressiona se comparado com edições anteriores, onde se teve, em 2016, por exemplo, quase nove milhões de inscritos. Dentre as possíveis razões para tamanha e visível diminuição de inscritos no exame (que é um fenômeno decorrente de anos anteriores), pode-se mencionar o alto índice de aprovações de estudantes de ensino médio em universidades particulares, que oferecem possibilidades atrativas de cursos superiores à distância, com carga horária reduzida e facilidades no cumprimento das disciplinas.

A par dessas questões, o objetivo deste texto não é discutir as razões da derrocada de inscritos no Enem. Como professor, algo me chamou a atenção nesta edição do exame, em particular, a notabilíssima repercussão negativa, especialmente daqueles que realizaram as provas, mas também de colegas de trabalho, coordenadores, gestores e especialistas educacionais, com relação ao tema da redação. Neste ano, tivemos uma novidade quanto à metodologia de aplicação do Enem, no tocante às datas de sua realização. Pela primeira vez, houve uma ruptura na tradição de anos remanescentes, onde as provas eram aplicadas em dois dias consecutivos, no sábado e no domingo, respectivamente. Em 2019, o Enem foi aplicado em dois finais de semana consecutivos, sendo as provas realizadas nos domingos. Entendi como positiva a decisão do MEC assim que divulgada, uma vez que se trata de uma prova extensa e muitíssimo desgastante, tanto do ponto de vista físico, psicológico e cognitivo.


Votando ao tema da redação. É muito comum o turbilhão de expectativas geradas em torno do Enem por quem vive da educação, durante todo ano letivo. É claro que essa expectativa se potencializa com maior evidência em quem irá realizar as provas. Instituições de ensino básico, sejam elas públicas ou privadas, e seus quadros administrativo, pedagógico e docente, procuram a todo custo trabalhar com assuntos e temas que o exame abrange, tendo uma noção geral dos conteúdos mais recorrentes, independentemente da disciplina. Nesse sentido e em particular, leciona-se para o terceiro ano do ensino médio, pautando-se única e exclusivamente em referência ao Enem. Dessa forma, todos os componentes e matrizes curriculares, o material didático e a orientação pedagógica/docente visa, sobretudo, moldar-se ao conjunto de referências temáticas e de conteúdos expostas nas questões do exame.


A redação, que tem um peso estatisticamente importante, é um desses modelos referencias. Tanto é verdade que, em síntese, algumas unidades escolares trabalham à parte a produção e interpretação textual, enfatizando elementos que possam satisfazer os critérios dos avaliadores das redações. Diante dessa faraônica necessidade de redigir um bom texto, proliferam cursinhos especializados em redações, escolas de escrita e produção textual. Em alguns casos, o funcionamento de tais cursinhos e escolas especializadas somente ocorre meses antes da aplicação do exame. Contratam-se professores-especialistas na área da escrita, da interpretação e produção de textos. Já é comum certas universidades e instituições particulares de ensino oferecerem capacitações e cursos a professores nessa área.


Diante de todas essas técnicas e métodos de preparação para a redação do Enem, a grande incógnita é o tema. Obviamente, é muito difícil saber qual será o tema da redação antes da aplicação das provas. Geralmente, tem-se em mente a ideia de um padrão temático ao qual o exame deixa subtendido ao longo dos anos, assim como em outros componentes curriculares.


Em 2019, o tema da redação do Enem foi “A Democratização do Acesso ao Cinema no Brasil”. Particularmente, um tema que nem mesmo o mais preparado dos candidatos ou candidatas esperava. Nem mesmo os professores especializados no assunto. No dia seguinte à aplicação da primeira parte do exame, onde constava a prova de redação, muitos de meus alunos do terceiro ano se queixaram do tema, afirmando ser irrelevante, sem substância social, com pouquíssimas possibilidades de argumentação e propositura textual. Até mesmo um dos professores de redação se queixou do tema redarguindo que o mesmo não foi justo com os estudantes pela indiferença com que o MEC trouxe a temática para o exame.


Em face de tamanha indignação, parei para refletir um pouco a respeito do tema e me deparei com uma posição oposta à visível insatisfação de meus alunos e colegas de trabalho. Quando surgiu a oportunidade, realizei alguns comentários a respeito argumentando que o tema possibilitava sim, ao candidato/candidata, uma escrita dissertativo/argumentativa considerável e substancial. A título de exemplificação, afirmei ser possível realizar uma discussão que procurasse enfatizar o pouquíssimo, ou quase nulo, acesso de algumas pessoas ao cinema. Exatamente isso. Em pleno século XXI, temos inúmeras pessoas que se quer entraram em uma sala de cinema. E isso nos diz muita coisa. Esse argumento poderia ser escorado com a questão da desigualdade social e de renda, que impossibilita muitas pessoas a estarem no cinema.


Outro argumento que acredito ser relevante, qual seja, o trabalho plausível de algumas ONGs e instituições sociais que levam o cinema até as comunidades carentes, como é comum ocorrer em regiões de periferia e favelas das grandes cidades. Além de inúmeros projetos que oportunizam gratuitamente o acesso ao cinema, por meio dos cinemas públicos ou itinerantes. O candidato/candidata poderia refletir, também, conectado ao argumento anterior, de que o cinema, sendo um é um mecanismo da chamada Indústria Cultural, segue a lógica do mercado, e que, portanto, se concentra nos grandes centros urbanos, dificultando o acesso de milhares de pessoas. Ademais, poderíamos sublinhar a necessidade de se criar políticas públicas que possam articular e desenvolver a interiorização e a atomização do cinema, dinamizando seu acesso em cidades do interior e a milhares de pessoas.


Ouvi de um colega de trabalho que esse tema foi uma “palhaçada do MEC com os estudantes”. Obviamente que discordei de seu posicionamento de forma respeitosa. O argumento de meu colega restringia-se ao elemento de uma crítica social relevante, que para ele, não estava presente no “famigerado” tema da redação. Ora, acredito que qualquer discussão e debate gere, automaticamente, reflexões que alcancem uma crítica social, mesmo aqueles que parecem ser “dispensáveis”. Tudo leva a crer que o posicionamento de meu colega deixava implícito uma expectativa de um tema de maior capacidade argumentativa, bem como de uma melhor disposição textual (facilidade de estruturar a redação nos critérios comumente aceitos).


Já que a questão posta por meu colega foi a de uma “carência” de substância crítica no tema da redação, poderíamos dizer que o candidato ou a candidata dispunham de um farto conjunto de críticas a serem expostas. Em primeiro lugar, reverberar a respeito dos recentes cortes nos recursos destinados à Agencia Nacional do Cinema (ANCINE), que de uma forma ou de outra, representa um projeto político de controle autoritário na produção audiovisual do país, ou mesmo na sua precarização. Em segundo, em ações de censura no ato do governo de impedir a divulgação e lançamentos de determinados filmes, documentários e campanhas publicitárias, como é o caso do filme Marighella e da campanha publicitária do Banco do Brasil que realçava a diversidade. Isso tudo sem contar a explícita ameaça do presidente da república de extinguir a ANCINE. Apenas neste parágrafo teríamos substância e argumentos mais do que suficientes para elaborarmos um texto crítico e essencialmente relevante no âmbito do Enem.


Acredito que uma das melhores posturas de um candidato/candidata numa redação do Enem é se posicionar de modo crítico, coerente e sensato. Além disso, deixar claro que seus argumentos estão embasados em fatos concretos, em dados e informações atualizados. Seria aconselhável também apresentar soluções possíveis e práticas que pudessem contribuir na transformação daquela realidade que se está analisando. No caso em tela, porque não pensar em uma proposta que procurasse valorizar a produção audiovisual nacional, não apenas por meio de financiamentos a amparos estruturais, mas, também, buscar uma ampla divulgação que pretendesse atomizar a produção artística nacional que é riquíssima no Brasil.


Dito isto, penso que, em face da indignação e revolta de muitos e muitas, o tema da redação do Enem pode sim possibilitar um excelente debate crítico-analítico, às expensas de qualquer outro assunto. Precisamos repensar nossos métodos e técnicas de ensino no que tange especialmente aos alunos e alunas de ensino médio e também àqueles que se preparam para o Enem nos cursinhos da vida. Conteúdo é muito importante, mas propiciar a reflexão crítica e a capacidade de sopesar sobre os acontecimentos mais recentes é mais do que necessário a quem anseia escrever uma boa redação ou mesmo ter um bom desempenho não só no Enem, mas em todos os vestibulares.

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