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Carnaval: o rei continua nu


No final do mês de fevereiro, e início de março, o país foi sacudido pela festa mais popular e mais democrática que se possa ter, a saber, o Carnaval. Embora não seja uma invenção brasileira, não há como negar que o carnaval passou por uma (re)adaptação importante no país, sendo incorporado pelas mais diferentes culturas, encantando milhões, divertindo tantos outros e, como não poderia ser diferente, incomodando alguns.


Aliás, historicamente, uma das funções mais primordiais do Carnaval está no fato de gerar incômodo, de provocar os poderes instituídos, de brincar com questões sérias, sendo sério por meio da brincadeira. Bakhtin (2013), em um dos livros mais impactantes sobre a cultura carnavalesca, abordando o fenômeno na Europa medieval/renascentista, desnuda o universo sociocultural dos fomentadores dos festejos carnavalescos, representado pelas camadas populares, afirmando que o momento dos festejos se constituía como espaço propício para inversão da ordem oficial, quando os oprimidos/populares se valiam da festa para a autoafirmação enquanto sujeitos, assumindo o protagonismo das mais diferentes ações, e talvez o mais importante, ridicularizando o poder oficial.


O rei está nu, ou melhor, no Carnaval medieval o rei era colocado, literalmente, nu, embora a nudez real, dentro do contexto observado, não pode ser entendida como algo sublime. No entanto, a nudez livre, além de ser uma das manifestações artísticas mais belas, foi incorporada como espaço de reinvindicação social por parte dos admiradores e frequentadores do Carnaval, servindo para representar os ideais da liberdade, como meio de protesto, assumindo e demarcando posições.


Diante da nudez o belo se apresenta de forma genuína, trazendo consigo uma série de implicações, principalmente para os grupos moralistas que veem na nudez uma espécie de provocação ao que entendem por moral e “bons costumes”. Como não têm condições, ou optando para não compreender, não imaginam que a essência do carnaval é essa mesma, ou seja, provocar a moral e os bons costumes. Afinal, o que é moral e bons costumes? Quem definiu os preceitos para construí-los?


Diante da incapacidade de impedir os festejos populares, durante o período medieval, a Igreja Católica acabou “permitindo” as manifestações, incorporando e sendo incorporada pelo gozo coletivo, sendo dominada pelo riso contagiante e desafiador dos grupos subalternos que levaram o sublime do grotesco ao extremo das manifestações culturais, não deixando incólume nem mesmo os grupos eclesiásticos. De acordo com Minois (2003), os acontecimentos que a Igreja Católica não consegue impedir, ela acaba “incorporando-o”.


O Cristianismo, de uma forma geral, continua mantendo uma estreita relação com o conceito de Carnaval, organizando, seja por meio do catolicismo ligado a renovação carismática, ou por meio das igrejas neopetencostais, os seus acampamentos de adoração “carnavalescos”. O fato de a Igreja criar para si um formato de Carnaval apresenta a resistência grotesca e burlesca dos folguedos populares perante os órgãos oficiais. Nesse sentido, a oficialidade ao se perceber incapaz de controlar a manifestação artística e cultural do povo opta por ter o fenômeno por perto, recusando a ideia, praticada ao longo de quase toda a Idade Média, de ter o fenômeno distante si.

Por meio de um rápido passeio histórico é perceptível que não é de hoje que o Carnaval provoca admiração, transformação, medo e receio. Mesmo com as transformações históricas, culminando na presença da oficialidade, continua sendo inegável o poder provocador que a festa carnavalesca suscita no imaginário coletivo.


No Carnaval, o rei não somente foi colocado nu, mas continua sendo despido. O atual presidente da República, representante maior da oficialidade, não passou desapercebido pelos blocos, pelos foliões, pelas escolas de samba, ou mesmo pelos indivíduos que não frequentaram nenhuma manifestação de grande envergadura, mas que compartilharam suas alegrias nos agradáveis bares espalhados pelas grandes, médias e pequenas cidades, quando não perderam a oportunidade para tecer críticas e xingamentos ao presidente, fazendo com que esses xingamentos se constituíssem em algo natural nas milhões de bocas que gritavam enquanto o corpo brincava o Carnaval. Naturalizar os xingamentos é uma característica cultural que somente o mais popular festejo propicia.


Incapaz de reconhecer a simbologia, ou mesmo a essência histórica do Carnaval, Jair Bolsonaro foi às redes sociais para tentar retirar a legitimidade da festa popular, mas ao fazê-lo, parece que o feitiço virou contra o feiticeiro, porque legitimou ainda mais o festejo. O que o “espírito” do Carnaval deseja é que a oficialidade se revolte com as críticas, sátiras e atos grotescos realizados e, nesse sentido, parece que o presidente da República ficou preso na armadilha carnavalesca.


Nesse ano se tornou mais perceptível que o Carnaval resiste com consistência, principalmente por atuar em diferentes frentes. A nudez trouxe seu ar de reivindicação e protesto, a Mangueira demonstrou que é possível conciliar indústria cultural com crítica e ativismo social. A Gaviões da Fiel apresentou ao público o grande vencedor do cenário contemporâneo, brincando com a falsa fé dos protagonistas que deram a vitória para a divindade maligna. Os blocos de rua brindaram a beleza da festa, deram uma bicuda na seriedade, demonstrando que o caminho para lidar com o cenário difícil está, também, na capacidade de inquietação e provocação que o Carnaval suscita.


O Carnaval foi e continua sendo o espaço da luta e da labuta, do anseio de construir um mundo mais feliz. Talvez ainda não tenha conseguido propiciar um espaço eterno de felicidade, mas diante de um contexto que o humor parece ser algo démodé, ter momentos de felicidade é uma grande conquista.


O Carnaval resistiu, e isso é tudo.

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