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Casa arrumada



Às vezes, por isso nem sempre, desejo transformações que aparentam ser impossíveis. Não, engana-se quem pensa que estou falando do desejo, cada vez mais frequente, do fim do capitalismo genocida e racista que nos assola. Meus devaneios apontam para outro caminho, isso porque não somente acredito, mas como vejo como pauta inadiável a defesa da superação do capitalismo. Esse modelo político, econômico e social, é o sintoma mais perceptível de todas as nossas mazelas, racismo, violência de gênero, exploração da classe trabalhadora, destruição ambiental, genocídio dos povos indígenas, e assim por diante. Acreditar no socialismo é muito mais do que utopia, é necessidade.


Voltando ao desejo, considerado impossível por alguns, tenho pensado o quanto seria importante, para a minha sobrevivência, voltar a ser criança. Não sei, imagino que poderia acontecer comigo o mesmo que aconteceu com Gregor Samsa, personagem de Franz Kafka no livro A Metamorfose, dormir depois de um dia intranquilo, no qual o gestor da morte não me deixa em paz, e acordar, não como inseto, mas como criança de no máximo 10 anos de idade. Se isso acontecesse, a primeira ação não seria de desespero, espalharia brinquedos por todo canto da casa, jogaria roupas e mais roupas sem muita preocupação, tomaria muito, muito sorvete. Insisto, somente mais uma vez, os brutos odeiam sorvete.


Gostaria de ser criança, de ser criança só por um dia. Depois da arte, tomaria um delicioso café da manhã, sentaria no velho sofá, esperaria alguns minutos até a televisão ligar, ficando horas vendo Irmão do Jorel. Depois de praticamente descobrir o nome do Irmão do Jorel, almoçaria como nunca, reclamaria da quantidade enorme e sem sentido das tarefas de casa, brincaria no final da tarde, já com menos intensidade do que no período da manhã, passaria uma água rápida pelo corpo, comeria um lanche bem reforçado, dispensando assim o jantar, sentaria no velho sofá, esperaria, novamente, a boa vontade da televisão e acompanharia calmamente o Urso sem Curso, de vez em quando migraria para o Bob Esponja. Desse, teria uma predileção pelo Lula Molusco. Antes de dormir, pegaria um bom livro da Olga de Dios, talvez A Rã de três olhos, O monstro rosa, não sei, qualquer um da autora estaria de bom tamanho, e exigiria dormir ouvindo música.


Se tudo isso acontecesse, no outro dia eu voltaria para a minha vida doentia, pensando, mais uma vez, nas ações e omissões do gestor da morte, lembrando de todos os eleitores do genocida, imaginando a reação de gozo dos meus futuros assassinos, refletindo, só um pouquinho, sobre os isentos. Os isentos não se importarão, até que a morte finalmente os alcance, mas já será tarde demais. Lembro-me de Bertold Brecht no magnífico poema sobre os “isentos”. Entretanto, se os isentos lessem Bertold Brecht não acreditariam na figura de heróis e tampouco esperariam pela morte, a nossa morte, chegar.


As crianças, na sua leitura de mundo toda particular, compreendem perfeitamente o cenário atual, sabem que o mundo não está nada bem, e que o Brasil está ainda pior. Sabem da existência de um monstro poderoso no Brasil. O monstro não é o Monstro Rosa, de Olga de Rios, até porque o Monstro Rosa é gentil, amigável, brincalhão, um amor de pessoa, ou melhor, de monstro. No entanto, o monstro que as crianças têm medo, o homem mau, como apresenta Eliane Brum em seu artigo Nojo, é real, nos enoja e nos causa medo, seus poderes são reais, sua capacidade de destruição torna-se perceptível todos os dias, afinal, são corpos e mais corpos. O monstro que as crianças reconhecem decide quem vive e quem morre no Brasil.


Gostaria de ser criança não para fugir da realidade, algo impossível, isso porque todas as crianças compreendem a realidade melhor do que parte significativa dos adultos. As crianças sabem que só existe um tipo de mamadeira. Gostaria de ser criança para acreditar no hoje, no máximo amanhã, que a verdadeira transformação é possível. Nesse sentido, não teria que esperar, como adulto, à transformação acontecendo sei lá quando.


No universo infantil, entre brincadeiras e desenhos, as grandes mudanças acontecem num estalar de dedos. Engana-se quem pensa em fantasia. A transformação é real, e não faltam exemplos servindo de legitimação. Ao deitar, em muitas ocasiões, as crianças saem tropeçando em brinquedos pela casa, chutando roupas abandonadas pelo caminho, derrubando copos escondidos durante as brincadeiras, desviando de peças aqui e acolá, além de tudo, antes da leitura e da música para embalar à noite, ouvem os sussurros dos adultos dizendo: “Amanhã cedo, quando acordarem, a primeira coisa é arrumar essa bagunça”. Os adultos não entendem que arte é arte. Lula Molusco, as crianças te entendem.


Dormem com esse horizonte de expectativa nada animador. Quando acordam, os brinquedos estão detalhadamente organizados, as roupas, provavelmente não tão bem organizadas, pelo menos estão no cesto de roupa suja, as peças ninguém mais viu, e os copos estão todos limpos. Durante a noite, provavelmente de manhã, uma verdadeira metamorfose aconteceu. As crianças sabem disso, as transformações são possíveis, acontece, o horizonte de expectativa que parecia ser péssimo fora transformado radicalmente e, mais importante do que isso, rapidamente. Elas acreditam, nunca deixaram de acreditar no poder do gesto, no poder dos olhos brilhando, desejando pela mudança do cenário.


Quando penso em transformações, tais como o fim do capitalismo, me deparo cotidianamente com adultos, pautados pela realidade, afirmando ser impossível à destruição do modelo político e econômico que nos violenta, assegurando que o capitalismo está enraizado na sociedade, nas instituições e no estado. Na leitura dos adultos, não de todos evidentemente, a consolidação do capitalismo impossibilita uma mudança drástica e de curto tempo. Se a realidade não fosse suficientemente cruel, o porvir adulto é desolador, a saber, quando pensar um mundo pós-pandemia, prática muito distante do Brasil, a tendência está para o desdobramento de um mundo mais desumano, mais dominado pelo neoliberalismo.


Como adulto, devo admitir, esse mundo distópico, desenhado pelos sensatos, me inquieta. Porém, assim como as crianças veem à metamorfose acontecer da noite até o período da manhã, quero acreditar, quero acreditar no impossível. Se não posso ser criança, pretendo agir como uma, talvez não consiga por um longo espaço de tempo, porém por um dia, quem sabe. Acredito na verdadeira transformação, acredito que será amanhã e não estará reservada aos meus netos. Os adultos entenderão como mera utopia, as crianças entenderão como casa arrumada.


Cada um com sua expectativa. Crianças têm razão.

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