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Conversa às avessas e o desmonte da educação pública


Boa noite a todos, todas e todes. Gostaria de agradecer à comissão de mobilização tanto pela oportunidade quanto pela confiança para compartilhar uma leitura sobre o cenário vivenciado pela Universidade Estadual de Goiás, e o quanto esse cenário está diretamente relacionado à política de precarização do Neoliberalismo. No entanto, antes de enveredar por esse caminho, convém ressaltar que o momento, apesar de adverso, nos apresenta um cenário de esperança. Ou melhor, possibilita esperançar, conforme nos ensinou o mestre de todos nós, Paulo Freire.


Farei uma inversão na perspectiva dessa fala. Geralmente, em análises de conjuntura, começamos nos valendo de uma leitura crítica/reflexiva e finalizamos com apontamentos e perspectivas de resistência. No âmbito da inversão, afirmo categoricamente que tenho esperança e não medirei esforços para vê-la concretizada. Me inspiro e tenho esperança no poder de mobilização do recém-formado Diretório Acadêmico do Câmpus Cora Coralina. A formação do Diretório, fazendo referência a uma mulher negra e professora, Leodegária Brazília de Jesus, evidencia o quanto os/as estudantes do Câmpus têm uma leitura crítica, histórica e consciente dos seus direitos, compreendendo que estudar em uma Instituição pública não é um privilégio, mas um direito assegurado a todas as pessoas.


No entanto, esses estudantes não se contentam unicamente com a ocupação do espaço universitário, mas se organizam e lutam por uma educação pública, gratuita, democrática e de qualidade. Quando olho para esses jovens estudantes, em sua grande maioria da classe trabalhadora, espoliados pela lógica excludente e violenta do Capitalismo, resistindo e enfrentando todas as adversidades - conciliação do ensino acadêmico com a prática laboral, ausência de transporte público e gratuito, bolsas de estudos insuficientes, falta de uma política estudantil voltada para o aluguel social e oferecimento de refeições com preços mais acessíveis, entre tantos outros problemas que vivenciam todos os dias, não posso deixar de ter esperança. Diante do cenário desenhado, conduzido e coordenado pela razão neoliberal, afastando o estado das demandas mais elementares da sociedade, esses estudantes teriam todos os motivos para desistirem. No entanto, não desistiram, se organizaram e estão lutando por seus direitos e para que esses direitos sejam garantidos às gerações vindouras.


Diante da luta, da organização e da resistência dos/as estudantes, não nos é permitido desacreditar. Um outro fator, digno de nota, está no fato de que desesperançar seria aceitar o Fim da História, seria aceitar a imposição e a violência do Capitalismo neoliberal sobre todos nós. Diante da razão neoliberal, a escola pública, como apresenta o sociólogo francês Cristian Laval[1], passa a ser entendida como se fosse uma empresa. Porém, me valendo da tese central do sociólogo, a escola não é uma empresa. A escola é um bem público, espaço propício e adequado para a construção coletiva do conhecimento, proporcionando o acolhimento de todos, todas e todes, independentemente de credo religioso, orientação sexual, classe social e tantos outras nuances que nos fazem humanos.


Desde a imposição do neoliberalismo enquanto modelo hegemônico a partir da década de 1980, com efeitos catastróficos no Sul Global, conforme apresenta o geógrafo David Harvey[2] no clássico livro Neoliberalismo, história e implicações, temos acompanhado um ataque sistemático ao ensino público, se tornando evidente nas políticas de desinvestimento educacional nos mais diferentes países. Escolas e Universidades foram e têm sido fechadas, sob alegação da falta de recursos para mantê-las. Entre os fatores característicos do neoliberalismo estão a construção hegemônica e o domínio da linguagem. Destarte, investimento se torna gasto, diretor ou diretora se torna gestor ou gestora e a função social das Escolas e das Universidades passa a ser apresentada como se fosse eficiência educacional.


A partir da constatação da gramática neoliberal dominando o cotidiano, faço referência ao pequeno, entretanto importante, livro do intelectual francês Roland Barthes[3], intitulado Aula. Durante a conferência ministrada para assumir a cadeira do Colégio de France, tendo sido indicado pelo filósofo Michel Foucault, Barthes afirmou que a essência do fascismo não é impedir as pessoas de dizerem, mas a essência do fascismo é obrigá-las, justamente, a dizerem. Nesse sentido, não podemos aceitar a imposição da gramática neoliberal, atrelada ao que há de mais reacionário na sociedade brasileira, dizendo que o acesso ao ensino público é dispendioso para o estado. Não, definitivamente não é. O acesso ao ensino público, em todos os níveis, do ensino básico ao doutorado, é um direito. 


O fato de reconhecermos na condição de um direito é, a meu ver, o vetor que nos une nesse e em tantos outros espaços. Nós, estudantes, professores, professoras, técnicos administrativos, estamos unidos para defender uma das mais importantes instituições de ensino superior público e gratuito do país. Se, diante da ofensiva neoliberal, o ensino público está sob ataque, a mesma constatação pode ser estendida à Universidade Estadual de Goiás. É muito comum ouvirmos afirmações que enfatizam que a UEG é a instituição do povo goiano. Não tenho dúvida sobre a veracidade dessa afirmação. Porém, considero importante fazer um adendo e uma distinção, me valendo de uma perspectiva da luta de classes. Destarte, considero que a Universidade Estadual de Goiás, nossa querida UEG, é a instituição de ensino público da classe trabalhadora goiana.


Aparentemente, parece ser somente um adendo ou uma simples mudança de categoria conceitual, substituindo povo por classe trabalhadora. Porém, nessa segunda parte, pretendo demonstrar que essa constatação em torno de uma Universidade da classe trabalhadora explica o porquê da existência de uma política de desmonte da instituição. Não nos esqueçamos, o capitalismo se move, no decorrer do processo histórico, contra os direitos da classe trabalhadora, e toda e qualquer conquista dentro desse sistema de opressão somente foi possível, conforme afirma o sociólogo Antonio Candido[4], por meio do suor, lágrimas e sangue do povo pobre e oprimido.


Se entendemos a Universidade enquanto um direito, ao olharmos para o passado, compreenderemos que muito suor, lágrimas e sangue foi derramado para que nós, filhos e filhas da classe trabalhadora, estivéssemos nesse espaço lutando para a consolidação de uma instituição pública, gratuita, democrática e de qualidade. O Brasil é um país marcado por uma violência histórica e estrutural contra as camadas subalternas. Diante dessa violência, o acesso ao ensino educacional, durante um período de longa duração, esteve distante de ser um direito, mas se caracterizou enquanto um privilégio das elites dominantes, um privilégio dos detentores do Capital. Historicamente, ter acesso ao ensino superior significou uma distinção de classe nesse país, demarcando o lugar a ser ocupado pelos poderosos e o lugar destinado para os pobres e oprimidos. Aos últimos caberia a subserviência e a obediência, características elementares de uma sociedade marcada pela violência estrutural.


O fato de estarmos juntos, juntas e juntes em defesa da Universidade Estadual de Goiás significa que existiram inúmeras pessoas que não se curvaram diante dos mandos e desmandos dos donos do poder. Essas pessoas resolveram lutar, não somente por elas, mas lutaram por todas as outras que não tiveram condições de fazer o mesmo, lutaram dentro do seu contexto e para além dele. Quando olhamos e procuramos compreender o passado, não nos cabe outra opção a não ser enveredar pelo caminho da luta. É por nós, evidentemente, mas é também para aqueles e aquelas que não conhecemos, e para aqueles e aquelas que não conheceremos. 


Quando faço a afirmação de que a Universidade Estadual de Goiás é a Instituição de ensino superior da classe trabalhadora, tenho como parâmetro os dados e as estatísticas que referenciam essa constatação. No entanto, com todo respeito aos dados, mas talvez não seja preciso recorrer a esses instrumentos para defender a tese de que a UEG oferece ensino público e gratuito à classe trabalhadora. Provavelmente, no intuito de reforçar o argumento, seja mais coerente e sensível ouvir os relatos emocionados de inúmeros estudantes. Relatos que podem ser representados na fala irretocável do Presidente do Diretório Acadêmico do Câmpus Cora Coralina, a saber, o estudante do Curso de Letras Eduardo Sardinha. Em uma determinada ocasião, o estudante afirmou que ele é o primeiro do nicho familiar a ter o direito de estudar em uma Universidade Pública, sendo motivo de orgulho e incentivo para tantas outras pessoas. Quantos outros Eduardo(s) temos aqui? Mas, em contrapartida, quantos outros Eduardo(s) podemos não ter mais se o desmonte da Universidade for concretizado? 


É por mais Eduardo(s), Kauãn(s), Maria(s), Vitória(s), Dougla(s), que estamos aqui. Nesse sentido, peço desculpas pela insistência, é para não ter mais esses atores e atrizes sociais ocupando o espaço da Universidade pública, que o Capitalismo Neoliberal move suas peças para destruir tudo o que foi conquistado, voltando mais uma vez às considerações de Candido, com suor, lágrimas e sangue pela classe trabalhadora. Provavelmente, o mais importante Sociólogo brasileiro, Florestan Fernandes[5], apresentou uma tese essencial para compreendermos as movimentações dos setores mais conservadores e reacionários da sociedade brasileira. A saber, a tese da Contrarrevolução conservadora. 


Nessa linha de raciocínio, diante de qualquer avanço e conquista dos mais pobres e oprimidos, Florestan Fernandes afirmou que os setores conservadores, em regra os detentores do Capital, se moviam para interromper qualquer possibilidade de transformação no tecido social. A contrarrevolução conversadora seria o “esforço” da elite dominante para manter o modus operandi da sociedade. Nesse modelo de sociedade, perdoem-me pela franqueza, os ricos têm acesso ao ensino superior e os pobres trabalham para manter os privilégios dos ricos. Entre os privilégios está o grau de distinção que o ensino superior, infelizmente, sempre proporcionou nesse país.


Considero, respeitando a temporalidade histórica, a tese de Fernandes como essencial para entendermos o cenário preocupante experienciado pela Universidade Estadual de Goiás. Com a ascensão da extrema direita nesses tempos mais recentes, a educação pública esteve e continua sob ataque. No entanto, utilizando a categoria de Theodor Adorno, presente no título do livro organizado por Fernando Cássio[6], a Educação se move, justamente, contra a barbárie.


Nesse sentido, entende-se que, além da possibilidade de garantir um direito de acesso ao ensino superior da classe trabalhadora, a Universidade pública do estado de Goiás se coloca como um espaço de resistência ao avanço do projeto autoritário ainda muito presente no país. Desmontá-la, garantindo a restauração do poder da classe dominante sobre os mais pobres, possibilitará a ascensão e a consolidação de um modelo de sociedade caracterizado na violência e na opressão. O desmonte é programado e, a meu ver, não poderá ser compreendido com uma leitura restrita ao tempo presente. Considero necessário entendermos o cenário vivenciado pela Universidade Estadual de Goiás ao longo dos últimos anos. Quando olhamos para um passado não tão distante, constatamos o fechamento de inúmeros cursos dentro da Instituição no decorrer de uma temporalidade recente.


Quando se fecha um único Curso, impede-se que tantos outros Eduardo(s) digam, emocionados, que são os primeiros do nicho familiar a terem acesso ao ensino superior público. Porém, o nosso desejo e a nossa luta serão para que mais pessoas, de todas as famílias, tenham direito ao ensino superior. No entanto, para isso, é necessário que a Instituição continue existindo. É por isso que estamos aqui, nos movendo a partir de um esforço coletivo para que a UEG continue existindo. Nossa união é para que o Capitalismo não destrua os nossos sonhos, os nossos direitos.


O cenário, diante da ofensiva do Capitalismo Neoliberal, do avanço da extrema direita e da contrarrevolução conservadora, proporciona, indubitavelmente, muita preocupação. Porém, quando olho para docentes, técnicos administrativos e principalmente para os/as discentes da instituição, representados no Diretório Acadêmico Leodegária Brazília de Jesus, tenho esperança. Ao esperançar, encontro forças para caminhar junto com vocês na defesa da Universidade Estadual de Goiás. Encontro forças para lutar e para defender o direito da classe trabalhadora de ter acesso ao ensino superior, gratuito, laico, democrático e de qualidade.

 

Agradeço à atenção de vocês.



Notas:


*Conferência realizada no dia 19 de março de 2024 no Câmpus Cora Coralina


[1] Consultar LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. Tradução de Marina Echalar. São Paulo: Boitempo, 2019.

[2] Consultar HARVEY, David. Neoliberalismo: história e implicações. Tradução de Adail Sobral & Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2008.

[3] Consultar BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada no dia 7 de janeiro de 1977. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2013.

[4] Consultar CANDIDO. Antônio. O Socialismo é uma doutrina triunfante. Entrevista concedida à jornalista Joana Tavares, do Portal Brasil de Fato, no ano de 2012. A íntegra da entrevista pode ser acompanhada por meio do seguinte endereço: O socialismo é uma doutrina triunfante (jacobin.com.br).

[5] Consultar FERNANDES, Florestan. A Revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

[6][6] Consultar CÁSSIO, Fernando. (Org.). Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019.

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