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De Meirelles à Paulo Guedes: as implicações das reformas neoliberais no Brasil



A maneira como a pandemia penetrou nos mais diferentes espaços sociais, o comportamento eugenista de parte considerável da elite brasileira, a política genocida do governo, naturalizando o que não pode ser naturalizado, protelando políticas públicas, e apostando na ignorância em detrimento da ciência, somente poderia nos conduzir para um único caminho, a saber, o da incerteza de quando o Brasil conseguirá diminuir os impactos nefastos da pandemia do coronavírus.


A tragédia tem contornos específicos no Brasil, isso porque somos o laboratório do mundo, no sentido de associar neoliberalismo e governo autoritário. A política neoliberal encontrou no autoritarismo que assola a sociedade brasileira, principalmente entre aqueles que historicamente estão submetidos a política da violência, o cenário propício para implementar as reformas que têm como objetivo concentrar mais riqueza e poder nas mãos do mercado financeiro, do agronegócio, e dos grandes empresários, socializando, enquanto isso, a pobreza. Somos um país de miseráveis.


De 2016 até os dias atuais foram muitas as reformas implementas no intuito de privatizar, ainda mais, a riqueza, e socializar, ainda mais, a pobreza. Exemplos não faltam, passando do governo Temer ao governo Bolsonaro; PEC de redução dos investimentos, Reforma Trabalhista, Reforma do Ensino Médio, Reforma da Previdência, e mais recentemente, diante da plena ascensão da pandemia, a aprovação do novo marco do saneamento. Nesse contexto, começa a tramitar no congresso nacional a famigerada Reforma Tributária. Como é possível perceber, no recorte de quatro anos, muitas foram as reformas impostas e aprovadas no Brasil.



O discurso que norteou a aprovação de todas essas reformas, basicamente, sempre fora o mesmo, rememorando; “trazer o nível de confiança para haver investimento no país, equilibrar as contas públicas, atualização das leis trabalhistas, gerar mais emprego, fazer com que o aluno/a do Ensino Médio tenha uma profissão ao concluir a primeira etapa de sua formação, reduzir o déficit na Previdência, universalização da água por meio da iniciativa privada, redução e atualização do estado para investir em áreas prioritárias”, e assim por diante.


Como nos grandes meios de comunicação a ideia de democracia é, na maioria das vezes, retórica, no sentido de pluralidade de ideias e de contradições, a narrativa neoliberal, das reformas, apresentada pelos “especialistas” do mercado financeiro, fora vendida como se fossem as únicas alternativas para resolverem todos os problemas nacionais. Problemas que seriam solucionados não mais pelo estado, mas pela iniciativa privada, mais precisamente pelo famigerado mercado financeiro.


No entanto, na prática, a concepção fundamentalista de mercado apresenta resultados totalmente diferentes daqueles apresentados pelos “especialistas” da grande mídia, financiados pelo mercado financeiro. O neoliberalismo, conceito atual do capitalismo, não somente não tem condições de resolver os mais diferentes tipos de problemas, incluindo a desigualdade social, mas como não tem o mínimo interesse de resolvê-los, levando em consideração que o capitalismo vive e sobrevive das crises que ele próprio produz. Diante disso, o neoliberalismo não tem nenhum receio de abraçar o autoritarismo para impor seu projeto de privatização da riqueza e socialização da pobreza.


Muitos estudiosos e estudiosas, destacando Laura Carvalho[1], Ricardo Antunes[2], Ruy Braga[3], entre outros/as. Esses autores/a têm demonstrando o quanto a desigualdade social, o retorno de pessoas a condição da pobreza extrema, e a precarização do trabalho, têm aumentado de 2016 até os dias atuais. Os estudos demonstram a eficácia das reformas neoliberais implementadas no governo Temer e no governo Bolsonaro, aumentando consideravelmente a miséria social no país.


No entanto, não é somente por meio dos importantes estudos acadêmicos que se torna possível perceber as implicações das reformas neoliberais de Henrique Meirelles[4] e Paulo Guedes[5], isso porque o cotidiano, a vida das pessoas no dia a dia, diz muito sobre o Brasil dos últimos quatro anos. As reformas aumentaram a miséria social, aumentou, também, a violência do estado sobre as populações mais vulneráveis, fora retirado bilhões da saúde e da educação pública, precarizaram o já precarizado trabalhador, e fizeram com que a tão deseja aposentadoria se tornasse mera utopia. A vida se tornou muito mais difícil, visível para quem deseja ver e visível, também, para àqueles que preferem manter os olhos vedados.


Quando parte considerável de governadores e prefeitos pareciam encarar à pandemia com a devida atenção, mês de março e abril, respeitando o conhecimento científico, foi muito comum ouvir e ler pedidos para que as pessoas ficassem em casa, visando diminuir, com isso, a circulação e, consequentemente, a possibilidade de contato/contágio entre as pessoas. Ficar em casa era e continua sendo fundamental. Porém, como é possível ficar em casa quando não se tem casa para ficar? No intuito de responder, não podemos perder do horizonte de análise o recorte temporal desse ensaio, reiterando, 2016 até 2020, contexto que demarca a consolidação do neoliberalismo sem freios no Brasil, representado pelas reformas de Henrique Meirelles e Paulo Guedes.


No dia 21 de outubro de 2019, o jornal O Popular, através de matéria assinada pela jornalista Jéssica Torres[6], apresentava a pesquisa feita pela Secretaria Municipal de Assistência Social de Goiânia (Semas), afirmando que, de 2016 em diante, a população vivendo em condição de rua na cidade de Goiânia havia aumentando 62%. A pesquisa apontava para 1,3 mil pessoas nessa condição, senso que 80 delas eram crianças. Nos dados apresentados pela (Semas), 800 pessoas trabalhavam durante o dia na rua e retornavam para moradias e abrigos públicos durante o período da noite, e 500 pessoas viviam, integralmente, na rua, não tendo nenhum tipo de política pública que pudesse atendê-los/las.


A situação observada pela Secretaria de Assistência Social de Goiânia, no final de 2019, constatando o aumento de 62% entre a população em situação de rua na capital do estado de Goiás, contabilizando os dados desde 2016, não deve ser compreendida como excepcionalidade no cenário nacional, mas como representação, microcosmo, da realidade brasileira dos últimos anos, resultado da implementação das reformas neoliberais na vida das pessoas.


No “mundo ocidental”, desde quando conseguiu cooptar o estado, início da década de 1980, primeiramente na Inglaterra e nos Estados Unidos, o resultado prático da política neoliberal está associado à concentração de riqueza e de recursos públicos/naturais em poder de poucos, e austeridade, miséria e estado mínimo para quase todos[7]. Diante dessa constatação, observando somente a situação de Goiânia, mas não perdendo a perspectiva de análise mais abrangente, como não afirmar que as reformas neoliberais têm conseguido atingir o seu objetivo no país?


Exemplos, infelizmente, pululam por todo os lados. Diante da pandemia, quando o direito de ficar em casa torna-se um privilégio, é entristecedor pensar na precariedade dos trabalhadores e das trabalhadoras por esse país a fora. Trabalhadores/as que não possuem nenhum direito, nenhuma garantia, trabalhando até 14 horas, sete dias por semana, para terem acesso ao mínimo vital, enfrentando todos os tipos de adversidades diante do cenário pandêmico.


Somente para ter uma dimensão da condição de vida precária que milhões de brasileiros encontram-se submetidos. Segundo dados do IBGE, apresentados no mês de fevereiro de 2020, o Brasil possui mais de 38 milhões de pessoas vivendo na informalidade, quando o estado de direito passa ao largo. Importante ressaltar, entre esses 38 milhões, sem direito a férias, e décimo terceiro, remetendo-me a duas importantes conquistas da classe trabalhadora, não está contabilizado os mais de 12 milhões de desempregados/as, assim como não aparecem na pesquisa os desalentados[8]. O que os estudos do IBGE têm demonstrado é que de 2016 até os dias atuais o percentual de informais tem aumentado consideravelmente[9].


No país do neoliberalismo sem amarras, quando até a água pode ser privatizada, milhões de brasileiros são obrigados a enfrentar à morte, pandemia, de “peito aberto”, carregando comida nas bicicletas laranjas do Banco Itaú para terem o mínimo do mínimo para se alimentar. Como não tem nenhum direito, se não trabalharem não recebem. Quem são esses trabalhadores/as precarizados/as? São jovens, negros e da periferia. Se isso não é necropolítica, sinceramente, não sei o que é.


É evidente, as pesquisas, o cotidiano, desnudam o quanto a Reforma trabalhista fora preponderante para a precarização do trabalho, quando o número de trabalhadores informais aumentou consideravelmente. Os neoliberais procuram naturalizar a pobreza, tentando construir o discurso do empreendedorismo para representar a vida difícil do pobre desempregado, quando muito, empregado sem direito. Porém, quem vive e enfrenta a miséria, quem sabe o que é enfrentar a morte, pandemia, todos os dias, sem nenhum direito, sem nenhuma garantia, descontrói a falácia do discurso neoliberal. É o que tem feiro, por exemplo, Paulo Lima, o Galo, liderança representativa dos entregadores antifascistas.


Em tuite recente, Galo escreveu: “Nós não somos empreendedores, colaboradores ou qualquer coisa do tipo, somos trabalhadores sem direito”. Quando à pandemia já tinha chegado de vez no Brasil, no dia 23 de março de 2020, relatando o cotidiano dos precariados entregadores de comida, Galo disse: “Você sabe o quanto é tortura um motoboy com fome tendo que carregar comida nas costas? A gente, motoboy, têm se sentido os músicos do Titanic, tá vendo o barco afundar e têm que continuar tocando a música (...) E outra coisa, motoboy é ser humano, mano (...), a gente não é só entregador de comida[10]”.


O relato/depoimento de Paulo Lima, o Galo, é forte. É forte porque é a mais nítida realidade. Esse é o Brasil dominado pelo capitalismo neoliberal, cúmplice do autoritarismo, que impõe reformas e mais reformas sobra a classe trabalhadora, trazendo como resultado o aumento da miséria, perceptível por meio das pesquisas acadêmicas e, não menos importante, através da análise atenta e humana sobre o cotidiano. A vida tem se tornado mais difícil.


Poderíamos continuar escrutinando o Brasil do capitalismo neoliberal de Temer/Meirelles, Paulo Guedes/Bolsonaro, analisando a falta de acesso a àgua em um país que torna possível privatizá-la, abordar o cotidiano de estudantes, crianças, jovens e adultos, que são obrigados a se adaptar a “nova realidade”, ensino à distância, quando falta pão e leite na mesa. Talvez uma análise mais atenta sobre o recorte social da pandemia, atingindo mortalmente pobres, negros, periféricos, ou quem sabe analisar a política de genocídio que os povos indígenas estão sendo submetidos[11], e assim por diante. Parafraseando a filosofia de rua, construída na práxis, de Galo; no Brasil, o Titanic afundou, mas não chegamos ao fundo do oceano, e o iceberg responsável pelo naufrágio é o capitalismo neoliberal.


Poderíamos continuar apresentado a retirada de direitos, a miséria social que nos assola, os lucros do mercado financeiro ampliados pelas reformas neoliberais, porém o cenário apresentado, não somente da miséria, mas da causa e da consequência da miséria, já é suficiente para ocasionar indignação. Ter a capacidade de se indignar é um passo importante para disputar, efetivamente, o que está porvir.





Notas:

[1] A economista e professora da USP tem escrito vários artigos no jornal Nexo, demonstrando os impactos das políticas de austeridade no cotidiano da população brasileira, quando essas políticas de austeridade aumentam o fosso entre os mais pobres e os mais ricos. Recentemente, lançou o livro Curto-circuito: o vírus e a volta do estado. [2] O sociólogo e professor da Unicamp é um dos grandes estudiosos da precarização do trabalho no Brasil. Pensando essa precarização ao longo das últimas décadas, no entanto, não descuidando de olhar o cenário atual, dominado pela era digital e as novas formas de exploração da classe trabalhadora. Além de muitos artigos escritos no blog da Boitempo, além de livros publicados pela mesma editora, o sociólogo lançou, recentemente, o importante livro Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. [3] O professor e sociólogo da USP é um dos mais importantes estudiosos da condição de precariedade que a classe trabalhadora enfrenta no Brasil. É de sua autoria o importante livro A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. Além desse e tantos outros livros, é possível encontrar vários artigos de Ruy Braga no blog da Boitempo. [4] Henrique Meirelles foi ministro da Fazenda do governo Temer, 2016- 2018. Meirelles foi um dos principais responsáveis pelas políticas de austeridade implementas no governo, incluindo, entre essas políticas, a Reforma Trabalhista, Reforma do Ensino Médio e a PEC de contenção de investimentos por 20 anos. [5] Paulo Guedes é, como denomina Bolsonaro, o superministro da Economia. Guedes é um dos grandes defensores das políticas neoliberais idealizadas na década de 1970 na Universidade de Chicago. À frente da economia no governo Bolsonaro, Guedes conseguiu aprovar a Reforma da Previdência, a aprovação do novo marco do saneamento e, recentemente, apresentou o projeto de Reforma Tributária. [6] O Popular. População de rua cresceu em Goiânia cresceu 62% de 2016 em diante, diz Semas. Acesso em 23 de julho de 2020. [7] No livro Neoliberalismo: história e implicações, o intelectual David Harvey apresenta o processo histórico de construção e consolidação do projeto neoliberal nos Estados Unidos e na Inglaterra, não deixando de observar o cenário latino-americano. Harvey apresenta as implicações do neoliberalismo no cotidiano social, retirando, em um espaço curto de tempo, a mínima redução de desigualdade social propiciada pela Socialdemocracia europeia. [8] Desalentados é a designação mais usual para representar os trabalhadores e trabalhadoras que, diante da procura, e por não conseguiram encontrar trabalho, acabam desistindo de procurar. [9] Em matéria publicada no site da Revista Exame no dia 15 de fevereiro de 2020, baseada nos estudos do IBGE, há a constatação que a taxa de informalidade aumenta e é a maior desde 2016. Na matéria constata-se que 19 estados brasileiros, além do Distrito Federal, registraram recorde na quantidade de trabalhadores e trabalhadoras sem carteira assinada. Acesso em 23 de julho de 2020. [10] É possível acessar, na íntegra, o depoimento de Galo por meio do canal do The Intercept Brasil no YouTube. [11] Sobre as adversidades que os indígenas estão enfrentando no Brasil, recomendo o importante artigo, publicado nesse mesmo espaço, A luta dos povos indígenas para sobreviver nos dias atuais, autoria de Sebastião Rafael Gontijo.

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