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Democracia ameaçada: autoverdade e extrema-direita



Nos últimos anos, sob o governo Bolsonaro/Paulo Guedes, a sociedade ficou imersa em uma conjuntura no qual os problemas estruturais; fome, desigualdade social, desemprego, violência de gênero, racismo, destruição ambiental e direitos dos povos originários, entre inúmeros outros, foram silenciados. Ou seja, enquanto política governamental, não estiveram presentes na pauta do dia. Na concepção de muitos intelectuais, o campo democrático, diante da ascensão da extrema-direita, tinha perdido literalmente a disputa da narrativa. Durante um ensaio escrito no jornal El País, Bolsonaro e a autoverdade[1], a jornalista Eliane Brum produziu uma reflexão pertinente sobre, naquela época, a ascensão de um pré-candidato de extrema-direita à Presidência da República. Na leitura de Brum, um dos fatores capazes de explicar o fenômeno da extrema-direita estava na capacidade de produzir uma autoverdade sobre os mais diferentes temas.


Diferentemente do que a categoria aparentemente representa, a autoverdade não seria sinônimo de pós-verdade. Evidentemente que o último conceito, pós-verdade, se tornaria um modus operandi dos quatros anos do governo Bolsonaro/Paulo Guedes. Porém, de acordo com Brum, a ideia de uma pós-verdade estaria associada a uma lógica de se produzir notícias falsas ou narrativas falsas sobre os mais diferentes temas. No entanto, a autoverdade estaria condicionada a uma capacidade da extrema-direita, e do seu maior e mais popular representante no Brasil, de emitir opiniões sobre tudo e sobre todos/as. Procurando fazer uma definição mais direta sobre a categoria, Brum, no supracitado ensaio, tece as seguintes considerações:


“O valor da autoverdade está muito menos no que é dito e muito mais no que dizer. “Dizer tudo” é o único fato que importa. Ou, pelo menos, é o fato que mais importa. É esse o deslocamento de onde está o valor, do conteúdo que é dito para o ato de dizer, que também pode nos ajudar a compreender a ressonância de personagens como Jair Bolsonaro e, claro, (sempre), Donald Trump”.

A categoria utilizada por Brum, fazendo referência ao personagem político Jair Bolsonaro, falando o que pensava independentemente das consequências de sua fala, teve como sustentáculo teórico uma série de pesquisas que a Professora Esther Solano, pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), desenvolveu com eleitores jovens na cidade de São Paulo. Pesquisa que resultou no artigo Crise da Democracia e extremismos de Direita[2]. Um dos fatores identificados por Solano (2018), proporcionando com que o político de extrema-direita tivesse tamanha aceitação entre o público mais jovem, estava no fato de Bolsonaro “falar o que pensava e não estar nem aí para as consequências”. Para muitos, aquilo que o diferenciava e continua diferenciando-o está na constatação de ser alguém autêntico. A autenticidade pode ser utilizada como uma categoria capaz de explicar a afirmação acima. Reiterando: “Ele (Bolsonaro) fala o que pensa e não está nem aí para as consequências”.


Na definição de Eliane Brum, o mais relevante na autoverdade não estava no teor daquilo que havia sido dito, mas a relevância muito maior estava no fato de dizer. Ou seja, para um segmento da população, o conteúdo da fala não necessariamente seria o mais importante, mas o fato de ter se posicionado fazia de Bolsonaro um político descolado, engraçado, autêntico e “verdadeiro”. A ideia de verdade, nessa linha de raciocínio, estava muito distante de significar uma verdade consensual sobre os fatos, mas simbolizava para alguém que falava aquilo que realmente acreditava.


É provável que tendo passado cinco anos da publicação do ensaio de Brum, e com o necessário distanciamento que o tempo nos oferece do fato histórico, existam melhores condições de entender o quanto a autoverdade teve um papel preponderante na ascensão e consolidação da extrema-direita no país. De forma especial, na aceitação popular do senhor Jair Bolsonaro. Talvez a autoverdade, mais do que a pós-verdade, explique o porquê de um governo que implementou um projeto de destruição do tecido social tenha conseguido se manter com índices de aprovação e apoio popular na casa dos 30% do eleitorado durante o seu mandato. E mesmo diante da destruição humanitária e sanitária proporcionada, com mais de 700 mil vidas perdidas em decorrência de uma política de morte implementada na pandemia do coronavírus, com mais de 30 milhões de pessoas passando fome, metade da população convivendo com a insegurança alimentar, somente não conseguiu ser reeleito porque enfrentou uma das maiores lideranças políticas do mundo, a saber, o senhor Luiz Inácio Lula da Silva.


No campo das hipóteses, se não fosse Lula, nenhuma outra liderança política do campo democrático teria condições de derrotar, eleitoralmente, o fascismo brasileiro. Torna-se necessário perguntar e ao mesmo tempo demonstrar preocupação com o fato de que um projeto de destruição, tendo se voltado contra o seu próprio povo, esteve muito próximo de conseguir alcançar a reeleição. Evidentemente que um fenômeno de tamanha abrangência não poderá se sustentar a partir de uma única hipótese. Diante das possibilidades, é possível enveredar por meio de uma análise histórica e identificar a força estrutural da extrema-direita no país, tendo o seu marco “inicial” com Plínio Salgado e o movimento integralista no estado de São Paulo no início dos anos 1930. Utilizando se de valores morais; Deus, Pátria e Família, Plínio Salgado construiu o maior partido fascista fora do continente europeu. O fato exemplifica o quanto a extrema-direita tem um lastro histórico no Brasil.


Bolsonaro não inaugurou o surgimento de uma extrema-direita fascista, pelo contrário. Dentro de um lastro temporal, há praticamente um século este núcleo ideológico existe de forma organizada no país. Nesse sentido, o que Bolsonaro conseguiu, e isso não é pouco, foi se tornar uma liderança popular desse espectro político. Talvez, desde o ex-presidente Jânio Quadros, a extrema-direita não tivesse uma liderança com tamanha expressividade como o senhor Jair Bolsonaro. A meu ver, mais do que a estética; vestir camisetas de times de futebol, andar de chinelo pelo Palácio do Planalto ou comer frango com as mãos, derrubando farinha sobre o corpo, a capacidade de alcançar e se fazer confundir com as pessoas esteve e continua encontrando explicação na ideia da autoverdade. Ou seja, para todos os públicos e faixas etárias, desde o pessoal da Faria Lima, passando pelo funcionário de uma grande empresa que se considera proprietário, até aquela pobre senhora de uma Igreja Neopentecostal, localizada na periferia de um centro urbano, facilmente poderia se encontrar um vídeo de Bolsonaro falando sobre redução do estado para o primeiro, empreendedorismo e meritocracia para o segundo, e uma defesa sobre o fortalecimento dos valores do “cidadão de bem” para a última.


Temos, a partir do último exemplo, a identificação de um Bolsonaro que falava sobre tudo, sobre todos, e para os mais diferentes públicos. Embora uma análise mais superficial sinalizasse para um político ignorante, violento e despreparado, a cada fala, gesto, estética e posicionamento tornou-se possível compreender a existência de uma preparação para alcançar determinado objetivo. Ou melhor, alcançar e convencer determinado(s) público(s). Afirmar que o campo democrático não estava preparado para lidar com a ascensão da extrema-direita parece ser óbvio. Porém, a dificuldade, a meu ver, não esteve na incapacidade para lidar com a pós-verdade, onde e quando a veracidade dos fatos se torna relativa ou mesmo irrelevante. Os desafios que se apresentaram e continuam se apresentando para o campo democrático estão no modo de se contrapor à autoverdade.


Conforme apresentado no início do ensaio, me valendo da tese de Eliane Brum, na autoverdade, mais valorizado do que o conteúdo, está o reconhecimento para com aquele que emitiu uma opinião. Ter uma opinião sobre tudo e sobre todos/as, independentemente do conteúdo, das consequências e da veracidade, constitui-se como o elemento central a ser reconhecido e valorizado. A opinião seria uma evidência da autenticidade do indivíduo. O senhor Jair Bolsonaro, provavelmente não foi o primeiro a ter um entendimento mais profundo sobre o poder da autoverdade, mas indubitavelmente foi aquele que melhor se valeu e mais se beneficiou dessa categoria. Por exemplo, o fenômeno que se tornou nas redes sociais, dentro de um espaço curto de tempo, explica a capacidade de entendimento.

Indivíduos e políticos de extrema-direita racistas, homofóbicos, misóginos, fundamentalistas religiosos, nutrindo um profundo ódio aos pobres sempre existiram nesse país. À referência ao movimento integralista de Plínio Salgado esteve distante de ser fortuita. Porém, no decorrer das últimas décadas, ninguém teve tanto orgulho de demonstrar o quanto é racista, homofóbico, misógino e aporofóbico como o senhor Jair Bolsonaro. Valores que mobilizaram a extrema-direita ao longo do processo histórico, mas que quase sempre estavam nas entrelinhas das falas, dos projetos políticos, principalmente depois do Pacto Democrático de 1988. No entanto, esses valores se tornaram motivo de orgulho para o político da extrema-direita e, por isso mesmo, no seu imaginário, deveriam alcançar mais e mais pessoas. A autenticidade encontra-se sustentada nesse fenômeno, a saber, de ter orgulho de apresentar os valores mais perversos que uma sociedade tem condições de produzir. Neste ponto, finalmente, conteúdo e autoverdade se encontram. Assim, podem ser utilizados como uma das explicações para a ascensão da extrema-direita e do seu mais bem acabado representante.


O conteúdo é antecedido pela fala. A famigerada defesa da “liberdade de expressão”, amplamente propalada pela extrema-direita, deverá ser compreendida como uma defesa aberta da autoverdade. Se Bolsonaro foi, até o presente momento, a figura política que melhor se valeu desse método, não resta muita dúvida de que inúmeros outros têm se utilizado da mesma estratégia, especialmente nesse contexto no qual o principal representante da extrema-direita se encontra inelegível por oito anos. A consolidação da autoverdade no imaginário social, conjuntamente com a capacidade que o setor radical da direita tem para lidar com esse fenômeno, compreendendo que a partir da autoverdade a pós-verdade poderá ser efetivada, apresenta uma preocupação abrangente, a saber, de que a ascensão e a consolidação da extrema-direita independem de uma única liderança.


A derrota eleitoral de Jair Bolsonaro está muito distante de significar uma diminuição da extrema-direita no tecido social. Uma outra constatação, um tanto quanto elementar: a inelegibilidade do ex-presidente não representa um esmorecimento do bolsonarismo, pelo menos a curto e médio prazo. Pelo fato de dominarem e se valerem da autoverdade, a sensatez recomenda, da nossa parte, acreditar que a extrema-direita continuará sendo uma grave ameaça para a frágil, entretanto, importante Democracia brasileira.



Notas:

[1] Ensaio publicado no dia 17 de julho de 2018, podendo ser acessado no seguinte endereço: Bolsonaro e a autoverdade | Brasil | EL PAÍS Brasil (elpais.com). [2] O artigo, autoria de Esther Solano, pode ser acessado no seguinte endereço: 14508.pdf (fes.de)

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