Recentemente estrou na Netflix o documentário Democracia em Vertigem, produzido por Petra Costa. O documentário com pouco mais de duas horas de duração, lançado pela plataforma no último dia 19 de junho já é, sem dúvida, sucesso de crítica e de aceitação. Em síntese, apresenta os acontecimentos que fizeram com que o Brasil, de país do futuro, chegasse em 2019 tendo Bolsonaro como presidente. Narrado em primeira pessoa, Petra Costa conduz o/a espectador/a pelos fios que interliga passado e presente, demonstrando que somente por meio dessa relação é possível compreender o Brasil dos últimos anos.
O que segue, a partir de agora, não se trata de uma resenha crítica do documentário, mas sim o relato das impressões que tive ao acompanha-lo. Depois de um dia intenso, de muita leitura, tanto para qualificação profissional, quanto para atividade profissional - parece redundante, mas estamos diante de um contexto difícil para quem deseja estudar - fui engolido pela vontade de ver Democracia em Vertigem, movido por críticas positivas e emocionadas de muitas pessoas que já tinham acompanhado. Quem já viu, ou que ainda irá ver, devera ter sensações parecidas com aquelas que tive, puxadas pelo fio da memória, afinal, o processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff foi "ontem".
Impossível esquecer à desfaçatez de tantos/as deputados/as que, em nome da família, de deus, do cachorro, do torturador e do papagaio, afastaram uma presidenta legitimamente eleita. A sensação é como se eu estivesse voltando ao passado, mas de forma diferente, porque o passado já não era mais pretérito, o presente escancara-o na minha cara, e esse escancarar não é nada delicado, porque hoje temos como presidente Jair Bolsonaro. Diante da constatação, confesso que me emocionei, senti raiva, desprezo, indignação e sensação de apatia por não ter conseguido impedir um golpe.
Mesmo não tendo votado em Dilma no primeiro turno das eleições de 2014, na época me sentia sensibilizado pelo discurso de Marina Silva, hoje continuo respeitando a ex-ministra e ambientalista, porém seu posicionamento complacente perante o golpe parlamentar me afastou de sua proposta política, sentia que naquele momento, 2016, a frágil democracia estava indo para o ralo. Fui para as ruas, conversei com pessoas tentando demovê-las da ideia de apoiar um golpe, fui chamado de Petista, o que não é nenhum demérito, alguns me mandaram para aquele lugar que todas/os que defendem a democracia nos últimos anos já foram mandados. Nada de anormal, porque o embrutecimento se constituiu como um fenômeno que passou a reinar nos últimos anos.
Por falar nos brutos, o mais interessante de observar é o perfil das pessoas que aparecem no documentário, de um lado há os homens brancos, se manifestando em prol da família, de deus, da moral, em prol de Moro, Cunha, Temer, dos bancos e dos “bons costumes”. Do outro, um retrato mais heterogêneo do que é, de fato, o Brasil, pessoas pobres, estudantes, trabalhadores/as, indígenas e outras minorias, acreditando em suas capacidades de impedir um golpe já consumando antes mesmo de iniciar. A democracia, para ter validade, depende de muitas coisas, uma delas é aceitar o resultado das eleições. Como o documentário reforça, Aécio Neves optou por não aceitar.
Não deixa de ser instigante a apresentação que feita sobre a ascensão do “herói” da vida real, o ex-juiz e hoje ministro da Justiça Sérgio Moro. Guardadas as proporções, mas o culto a Sergio Moro, tratando-o como herói, como parte da sociedade fez, também insuflada pelos grandes meios de comunicação, me ocasionou o mesmo efeito desolador que tive ao acompanhar a alçada de Bolsonaro até se tornar presidente. Talvez essa sensação seja resultado mais das matérias do The Intercept Brasil do que propriamente de Democracia em Vertigem. Porém, fica cada vez mais difícil desassociar Moro de Bolsonaro.
O culto ao “herói”, e ao “mito”, demonstra que parte da sociedade brasileira não possui maturidade suficiente para resolver os seus próprios problemas, e diante da fraqueza constrói “heróis”. Porém, a nossa esperança é que com o passar do tempo os seres alçados além da humanidade se derretem. O tribunal da História, mesmo que muitos não concordem, é cruel com os “heróis” içados pelos opressores. Os dias atuais falam por si só.
Perceber a ascensão e "queda" do ex-presidente Lula me entristeceu consideravelmente. Ao rever os últimos momentos que antecederam sua prisão, tive a sensação que Lula não foi e não está preso sozinho, parece que acompanhamo-nos sem perceber. Quando foi decretada a prisão pelo ex-juiz Sérgio Moro, 7 abril de 2018, Lula disse: “Eu não sou um homem, sou uma ideia”. É provável que essa ideia de Lula acompanhado, ou Lula nos acompanhando, tenha sido aflorada, também, pelos inúmeros relatos que Democracia em Vertigem apresenta, quando traz várias pessoas que tiveram suas vidas transformadas por políticas públicas do governo Lula. Uma senhora diz: “Eu sou analfabeta, mas minha filha faz faculdade”. Isso se chama reconhecimento.
Entristece acompanhar no documentário, e atestar no cotidiano, a representação de muitas pessoas que foram beneficiadas pelas políticas implementadas pelo Partido dos Trabalhadores comemorarem a prisão continuada do ex-presidente. No ditado popular esse comportamento é entendido como; "Cuspir no prato que comeu". Então, não surpreendente, porque nos últimos anos os brutos reinam e gratidão se tornou uma ação em desuso no Brasil.
Porém, importante ressaltar, o documentário não é somente elogios ao Partido dos Trabalhadores e suas figuras históricas, Dilma e Lula em especial, também tece importantes críticas, podendo ser destacada às alianças que o PT fez para ter governabilidade, quando, com isso, se distanciou de suas bases sociais. Essa crítica é muito bem construída pelo ex-ministro Gilberto Carvalho. Os erros do Partido dos Trabalhadores também explicam a ascensão de Bolsonaro, e o documentário é muito feliz ao tatear essa questão que é tão delicada para parte da esquerda.
Petra Costa nos ajuda a compreender que a nossa realidade não é fruto somente do agora, mas do ontem e do anteontem. Parece óbvio, mas não é. Porém, sem ser taxativa, quanto à relação passado/presente, a diretora deixa margem para entender que o presente tem suas peculiaridades, por mais que a peculiaridade brasileira seja, nesse momento, assustadora. Não é demasiado afirmar que somos o único país no mundo que elegeu, por meio da democracia, alguém que historicamente sempre se posicionou contrário ao sistema democrático.
Diante de um cenário que está fazendo de tudo para apagar o passado, Democracia em Vertigem aparece como meio para fazer com que esse passado não se apague, deixando um legado para o tempo presente, e principalmente para as gerações vindouras. Quando, daqui algumas décadas, voltarmos para apresentar o Brasil após a redemocratização até os idos de 2019, indubitavelmente, Democracia em Vertigem será uma fonte indispensável.
Mais do que trazer certezas, Democracia em Vertigem angustia, entristece, emociona, e emudece. Porém, também compadece da dor dos/as angustiados/as, principalmente quando traz como alento, o que nos resta, a saber, as dúvidas. Ao vê-lo, tenho a leve sensação que a arte nos salvará.
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