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Dois Papas

Produzido pela Netflix, o filme Dois Papas (2019) é ao mesmo tempo empolgante e revelador. O filme é dirigido por Fernando Meirelles, cineasta brasileiro de notável reputação no mundo cinematográfico. O reconhecimento do diretor brasileiro se deve, em grande parte, pela direção de Cidade de Deus (2002), filme que lhe rendeu quatro indicações ao Oscar, inclusive ao de melhor diretor. Dois Papas é um filme para quem quer apreender a ser mais empático, com quem almeja assimilar valores como o respeito e altruísmo, mesmo com quem não concordamos.


O filme desperta um interesse logo de imediato, assim que observamos seu título: Dois Papas. Somos levados a um pequeno delay interpelativo, envolto de certas curiosidades. É preciso admitir, o jogo de marketing e a sacada com o título foi muito bem elaborada, o que para um filme é crucial no contexto da Indústria Cultural. O enredo do filme contextualiza a renúncia do Papa Bento XVI (Joseph Ratzinger), que permaneceu como chefe máximo da Igreja Católica por oito anos (de 2005 a 2013) e o Conclave (ritual tradicional católico do Vaticano para a eleição de um novo pontífice), que acabou resultando na escolha de Jorge Bergoglio como novo Papa, sob a alcunha de Francisco.


Particularmente, um dos grandes sobressaltos do filme é mostrar o que muita gente não sabia ou sabia de menos. Daí afirmação inicial de ser o filme empolgante e revelador. Um exemplo claro dessa adjetivação é a divergência tanto intelectual quanto de pensamento entre Ratzinger e Bergoglio. O primeiro, mais conservador e ortodoxo, o segundo, mais progressista e flexível. À primeira vista, essa diferença tão nítida poderia associar-se à visão de intolerância, rejeição e até certo ponto ódio entre os dois, como geralmente acontece com pessoas que possuem ideias e opiniões diferentes. Mas não. O que se pode observar é justamente o contrário. Há em Dois Papas uma lição de tolerância e respeito mútuo que raramente se vê hoje em dia, mesmo quando se refere a um ambiente e a um modo de vida baseando numa crença e numa tradição religiosa (Catolicismo). Ratzinger e Bergoglio – brilhante e competentemente interpretados por Anthony Hopkins e Jonathan Pryce, respectivamente – demonstram a todo momento suas divergências, embora isso não afete a relação de respeito mútuo e diálogo aberto entre os dois.


Outro exemplo de ruptura relacional entre Ratzinger e Bergoglio seriam as suas respectivas origens. Ratzinger aparenta preferir os grandes centros eruditos e intelectuais, enquanto Bergoglio tem preferência em estar mais próximo do povo humilde e pobre. Todavia, esse também não é um atenuante que interfira na relação entre os dois clérigos. O que é possível perceber, muito sutilmente, são os diálogos que, em dados momentos, revelam a constância e a aproximação de ambos. E isso ocorre principalmente na exposição contínua das contradições e antagonismos de ideias e pensamentos dos dois “papas”, o que deixa o filme mais atraente. Essa interpretação possibilita vislumbrar que o contraditório, sejam ideias ou pessoas, possa ser colocado em debate, em discussão, com argumentos e proposições, sem que para isso haja a necessidade da exclusão, da segregação, da violência e do ódio. Essa é uma fórmula do genuíno e ideal comportamento humano.


Por falar em comportamento humano, outra lição importante que se pode subtrair do filme é a possibilidade de entendermos que, além da função política e religiosa que possuem, como Cardeais e Papas, são pessoas de carne e osso, seres humanos que choram, sorriem, sentem medo, adoecem, tem limitações e toda sorte de problemas. Isto é, me refiro ao aspecto muito bem abordado no filme que é a demonstração da ‘humanidade’ dos personagens ali retratados. Esse aspecto fica evidente quando Ratzinger – já como Papa Bento XVI – convida Bergoglio a se dirigir até o Vaticano, já com a premeditada ideia de abdicar do papado. Longos diálogos são realizados entre os dois onde compartilham suas ideias, confessam seus segredos e declaram suas preocupações. Esses diálogos são a demonstração de uma admiração recíproca, mesmo Bergoglio não concordando com a omissão de seu companheiro de interlocução nos escândalos de pedofilia no seio da Igreja, ou no debate acerca do celibato. Bergoglio nunca omitira sua despojada intenção de iniciar um movimento de Reforma na Igreja, movimento este que pudesse aproximar a Igreja e seus membros do povo pobre e humilde. Ideia e intenção que Ratzinger dificilmente aceitava, mas ouvia com atenção o entusiasmo com que seu colega argumentava. Os motivos que levaram o Papa Bento XVI à renúncia são pouco explorados, o que de modo algum prejudica o desfecho do filme.


A cena final é emblemática. Vemos Bergoglio (já como Papa Francisco) e Ratzinger sentados assistindo à final da Copa do Mundo de 2014, no Brasil. Essa cena, em particular, é o que os especialistas no ramo do cinema chamam de “licença poética”. Isto é, quando o diretor e o roteirista de um filme inventam ou criam cenas que na realidade não aconteceram. O encontro entre o Papa Francisco e Ratzinger para assistir à final da Copa não aconteceu na realidade, disse em entrevista o próprio Fernando Meirelles. O diretor disse que Francisco sim, assistiu ao jogo e viu sua seleção ser derrotada para a Alemanha, enquanto Ratzinger havia ido dormir. Meirelles ainda disse que a cena final tinha por objetivo flertar com o gosto por futebol de Francisco (torcedor declarado do San Lorenzo) e ao mesmo tempo mostrar o lado humano do Papa, no que claramente obteve êxito.


A poucos dias, uma outra cena envolvendo Francisco ganhou as redes sociais e até mesmo os canais televisivos. Vemos Francisco caminhando em meio a uma multidão limitada por grades de contenção. Em dado momento, uma mulher puxa o braço de Francisco empregando uma certa quantidade de força. A reação de Francisco foi instantânea: ele virou-se rapidamente, deu alguns ‘tapas’ na mão da mulher e disse: “Ei...larga, larga”. Como nas redes sociais há todo tipo de opinião, algumas repudiaram o gesto do Papa, taxando de agressivo e pouco condizente com sua posição. Outras, já mais coerentes e sensatas, deixaram explicitas a sensação de que o filme de Meirelles nos proporciona: o Papa é um ser humano como eu e você, e que em determinados momentos queremos mesmo e desejamos energicamente dar alguns ‘tapas’ em alguém.


Francisco tem demonstrado ser um Pontífice diferente de tudo que a Igreja Católica historicamente pôde ter. Seus ideias e planos de reformulação de algumas questões pontuais na Igreja Católica são audaciosos e revolucionários. Entretanto, o Papa argentino tem encontrado gigantescos obstáculos para continuar a sua Reforma. Existe uma alta cúpula da Igreja Católica de cunho conservador que mantém nas mãos o poder de influência e articulações políticas capitais. O desafio a que Francisco se presta é realmente admirável e digno de importante reconhecimento.


Por fim, àqueles que não assistiram ao filme Dois Papas, aqui vai uma ótima recomendação.

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