Um dos grandes desafios dos profissionais da educação é aproximar a disciplina e sua ciência do cotidiano e da vivência de seus alunos, por muitas vezes o distanciamento entre ciência e cotidiano conduz a uma perca de entusiasmo para com o conteúdo ministrado empobrecendo a construção do conhecimento. A geografia não fica de fora disso, seu principal objeto de estudo o espaço está intimamente ligado as nossas práticas cotidianas a forma como conhecemos o mundo a nossa volta, a forma como ele nos influencia e como nós o influenciamos nos torna agentes de práticas geográficas. Para Ruy Moreira “Partimos do princípio de que as práticas geográficas são categorias do empírico. É por isso são também mediações que fazem da compreensão do espaço a compreensão da sociedade, e da teoria do espaço uma teoria da sociedade, e vice-versa.”(2011, p. 82)
Sendo assim, independe de gostar ou não da geografia como disciplina escolar todos nós praticamos geografia em cada ato do nosso cotidiano. O simples ato de se levantar e ir à escola é uma prática da geografia, no caminho reconhecemos os lugares, os pontos de referência, a direção a ser seguida, fazemos um pequeno mapa mental que nos conduzirá ao destino desejado. Outro exemplo pode ser percebido dentro de nossas casas ao posicionarmos os móveis, cada um estará posicionado para cumprir sua função de forma mais apropriada ao espaço disponível. Deste modo, até mesmo uma inocente brincadeira de rede social pode se transformar em um interessante exercício de geografia. Nesta primeira semana de março de 2018 viralizou nas redes sociais a brincadeira do “Diz que da cidade X mas não conhece determinada coisa”, fazendo uso da memória coletiva e dos pontos de referência que apenas os moradores poderiam conhecer para definir as particularidades de suas cidades, muitos mesmo sem saber, utilizaram uma importante categoria da geografia o “Lugar”.
A geografia como ciência possui ferramentas que ajudam na análise de suas questões, essas ferramentas são suas categorias teóricas, são elas: Espaço, Paisagem, Região, Lugar e Território. Cada uma funciona como uma lente, um olhar sobre um recorte de nosso cotidiano, mais precisamente um recorte do espaço geográfico. O espaço é a categoria máxima da geografia, é a totalidade dos elementos naturais e humanos que interagem entre si. A Categoria espaço é complexa, abrangente, multifacetada e dinâmica. Na definição de Milton Santos o Espaço é: “[...] um conjunto indissociável, solidário e também contraditório de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá” (SANTOS, 2012, p. 63). Simplificando em outras palavras, o Espaço é onde tudo acontece.
A brincadeira então que ganhou muitos adeptos nas redes sociais utiliza a categoria Espaço por esta ser uma categoria universal que abrange as demais, mas especificamente está diretamente ligada a categoria Lugar, pois as descrições dos elementos que simbolizam o pertencimento a cidade X ou Y está intrinsecamente ligada as vivências, como afirma Silva (2015): “O lugar é uma categoria analítica (uma porção do espaço), é onde a vida acontece, é o lócus do convívio social” (p. 243). O Lugar enquanto categoria necessita dessa relação de proximidade e afetividade que o indivíduo estabelece com os elementos que compõem o espaço vivido. É através da categoria Lugar que podemos identificar a diferença entre uma casa comum e a casa dos avós, ou a diferença de uma praça qualquer e a praça onde crescemos e brincamos na infância.
Para Ana Fani Carlos (2007) O Lugar é onde se produz a existência social, é o mundo vivido e todo seu significado é atribuído por aqueles que pertencem a determinado recorte espacial, é o convívio social que atribui sentido ao lugar. Assim, o lugar também é identidade e para ser analisado é preciso entendê-lo como uma tríade: Habitante – Identidade – Lugar. E é aí que a brincadeira acontece: O conhecimento e a afetividade do indivíduo com os elementos que compõem o lugar define sua identidade. Se você não conhece ou não se identifica com determinado elemento citado na brincadeira então consequentemente você não pertence a aquele lugar.
A brincadeira é divertida pois evoca um conhecimento coletivo da espacialidade, muitos se identificam pois os fatos e os objetos citados fazem parte de um convívio social comum, porém não podemos definir a análise do lugar apenas pelo consenso coletivo. A atribuição de sentido aos lugares é também individual, ligado a particularidades de cada um, pois mesmo que os diversos indivíduos participantes da brincadeira se recordem dos mesmos objetos citados, a cada um o objeto trará significados diferentes, pois, estão atrelados a suas experiências, suas vivências particulares. Então o sentido atribuído ao lugar pode ser plural, mas também poderá ser singular.
Aos poucos instintivamente esta brincadeira revelou diversos olhares sobre espaços comuns, retomando memórias e imaginários, produzindo mentalmente mapas que revelam uma geografia das cidades, ou melhor uma Geograficidade termo usado por Lacoste (1988) que define esta relação de existência espacial que compreende o mundo como o ser e estar do homem neste mundo.
Assim como todo viral não sabemos onde ou quando começou a brincadeira do “diz que é da cidade X...” mas gosto de pensar que partiu de um geografo, e que sua iniciativa buscou fazer com que fora do ambiente das quatro paredes das salas de aula (além dos muros da escola) as pessoas começassem a perceber que a geografia é parte de nossa vida e que pode ser divertida e interessante.
O “diz que é da cidade X” é uma inspiração para continuarmos a buscar a aproximação da ciência com o cotidiano na prática pedagógica, nos mostrou a geografia e a categoria Lugar de uma forma leve e divertida, e abre as portas para que possamos entender as demais categorias com o mesmo entusiasmo. E espero que tenham se interessado, e que possamos nos próximos textos conhecer também de forma divertida um pouco mais sobre as demais categorias: Território, Região, Paisagem.
Boa semana amigos!
Bibliografia:
CARLOS, Ana Fani. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007.
LACOSTE, Yves. A geografia – isso serve em primeiro lugar, para fazer a guerra. São Paulo: Papirus, 1988.
MOREIRA, Ruy. Pensar e ser em geografia: ensaios de história, epistemologia e ontologia do espaço geográfico. São Paulo: Contexto, 2011.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2012.
SILVA, Julio César Félix. Categorias analíticas da geografia: caminhos para leitura do espaço geográfico. revista Diálogos – N.° 14 – ago. / set. 2015
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