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Grande mídia e neoliberalismo: cumplicidade em tempos de pandemia


Nos últimos anos, mais precisamente desde a retirada da Presidenta Dilma Rousseff, tem-se acompanhado uma disputa de narrativas envolvendo a economia. Circulando na mídia alternativa encontramos os/as economistas que defendem uma melhor redistribuição de renda, diminuição da desigualdade social, ampliação do atendimento estatal em áreas prioritárias, quando se destacam; saúde, educação, moradia, alimentação, emprego, e outras políticas que necessitam da atuação efetiva do estado para ocasionar transformação na realidade social. Em tese, por meio dessa narrativa, o estado é fundamental na vida dos cidadãos e cidadãs, sem ele, as necessárias transformações não acontecerão.


A outra narrativa aparece representada na fala e nos textos dos economistas neoliberais. Os economistas neoliberais estão muito mais ativos no cotidiano das pessoas do que o outro modelo de economia apresentado acima. O motivo pela inserção e “familiaridade” dos neoliberais está no espaço que ocupam, a saber, o espaço da grande mídia. Os adeptos dessa vertente econômica estão no meio televisivo, radiofônico, nos jornais impressos, Podcast e, mais recentemente, é possível encontra-los/las nas redes sociais, recitando, praticamente sem nenhum contraponto, os dogmas do neoliberalismo.


Diante da possibilidade de circulação dos neoliberais, tem se tornado corriqueiro a narrativa que versa sobre a relevância da iniciativa privada, sobre a necessidade da redução do estado, equilíbrio das contas públicas, privilégio dos servidores públicos, reformas necessárias para retomar o crescimento econômico, meritocracia, empreendedorismo, mão invisível do mercado e assim por diante. Não resta muita dúvida que o leitor e a ledora desse artigo, para ficar apenas em um exemplo, ao ligarem os aparelhos de televisão para acompanhar os programas jornalísticos têm se deparado com essa narrativa/discurso sendo recitado como uma verdade inquestionável pelos “especialistas” da economia. Especialistas da grande mídia.


Junto a essa narrativa, quando o/a âncora do telejornal afirma: “Vamos ouvir o/a especialista econômico”, percebe-se que junto com o receituário neoliberal o “especialista” sempre atribui características humanas para o neoliberalismo, ou melhor, para o representante mais perceptível desse modelo econômico, a saber, o mercado financeiro: “O mercado está nervoso, o mercado está agitado, o mercado está mais calmo, o mercado manifestou-se favorável, o mercado está otimista, o mercado está pessimista...”. Enfim, exemplos de tentativa de humanização do mercado não faltam. A palavra mercado fica tão impregnada e a humanização desse setor financeiro parece ser tão real que a qualquer dia esperamos receber uma ligação de alguém dizendo: “Oi, eu sou o mercado financeiro”.


Quando se observa o projeto econômico e social do governo Temer, tendo continuidade no governo Bolsonaro, percebe-se que a disputa entre os economistas neoliberais e os economistas defensores do estado tem sido vencida de goleada pelos primeiros. Afinal, de 2016 até os dias atuais o que se tem é perda de direitos da classe trabalhadora, aumento da miséria social, diminuição das políticas públicas e, em contrapartida, aumento exponencial do lucro das instituições bancárias.


Embora, é importante ressaltar que os economistas defensores da intervenção estatal partem do subsolo, enquanto os neoliberais partem do terceiro andar e sobem de elevador. A desproporcionalidade da disputa está no espaço que ocupam. Por exemplo, a capacidade de penetração de Míriam Leitão[1] no lar dos brasileiros é desproporcional se comparada com Luiz Gonzaga Beluzzo[2]. Enquanto Míriam Leitão fala para um público de milhões de telespectadores/as, Beluzzo escreve para milhares de pessoas. O processo de comparação é necessário para constatar o obvio, ou seja, é difícil construir outra narrativa, apresentar outro modelo de sociedade, outro modelo econômico se não há contraponto nos grandes meios de comunicação.


Além disso, para entender o fator que possibilita com que especialistas da área econômica, tais como Míriam Leitão, tenha espaços nos grandes meios de comunicação, ao contrário de Beluzzo, é suficiente apenas observar quem são os patrocinadores da grande mídia. Ao fazer à observação, rapidamente constatara que quem patrocina toda a programação, sem restrições, são os maiores bancos privados do país, cooperativas de crédito, e agencias de investimento. Existe uma relação umbilical entre grande mídia e os representantes do neoliberalismo, entre grande mídia e o mercado financeiro. Essa constatação, possível de ser atestada durante os intervalos, explica porque a defesa do neoliberalismo aparece em uníssono nas vozes dos “especialistas” econômicos. A impressão que se tem é a de que existe um consenso entre os economistas na defesa irrefutável do modelo neoliberal. No entanto, são inúmeros os críticos desse modelo político/econômico, porém, aqueles que têm uma leitura contrária não têm se quer a oportunidade de tecer suas considerações no espaço da grande mídia. Por que mesmo? O intervalo responde.


Quando esteve no poder, o Partido dos Trabalhadores cometeu muitos erros, mas, possivelmente, um dos mais significativos foi não ter feito o processo de democratização dos meios de comunicação. Como preferiu conciliar, em detrimento de democratizar, poderia ter pelos menos investido significativamente para a consolidação de uma empresa pública de comunicação. Apesar da importância, a EBC[3], representada principalmente pela TV Brasil, nunca conseguiu ser uma alternativa e um projeto de comunicação que construísse conhecimento de acordo com as demandas da população mais vulnerável do país.


A função social da EBC ficou ainda mais comprometida depois do sequestro do poder pelo governo Temer, quando se tornou somente mais uma mídia que passou a atender os interesses do mercado financeiro. No Governo Bolsonaro, além de favorecer os interesses neoliberais, a empresa pública de comunicação está a serviço do que há de mais reacionário no país. Uma rápida pausa do controle na TV Brasil é capaz de fazer qualquer um, que acredita na importância de um canal público de comunicação, se desesperar.

Apesar da onipotência e onipresença do mercado financeiro na grande mídia, perceptível ao longo das últimas décadas, os telespectadores/as, os ouvintes e os leitores e ledoras devem ter percebido que houve uma mudança no discurso diante da consolidação da pandemia do Coronavírus no Brasil. A narrativa marginal, defesa do estado controlando a economia, até então negligenciada passou a estar presente nos mais diferentes meios de comunicação. No entanto, não houve mudança entre os analistas da economia, não houve substituição, não retiraram, por exemplo, Míriam Leitão e substituíram por Luiz Gonzaga Belluzo, nada disso. Quem, nesse momento, está defendendo a importância do estado para salvaguardar a vida das pessoas são os mesmos que sempre defenderam a diminuição do estado, que sempre nos impuseram à defesa do estado mínimo e, consequentemente, construíram a narrativa da participação da iniciativa privada em todas as áreas. Os neoliberais de ontem, hoje são os defensores do estado.


Palavras tão comuns no vocabulário dos especialistas econômicos da grande mídia, tais como; “austeridade, redução do estado, reformas, reformas, reformas, iniciativa privada, meritocracia, empreendedorismo,” foram rapidamente substituídas por; “solidariedade, importância do estado, esse é o momento do estado investir, cabe ao estado cumprir o seu papel...”. Somente para reiterar, os “especialistas” da economia, representantes do mercado financeiro, que ficaram anos e mais anos recitando o mantra neoliberal, no momento da pandemia deram uma guinada nos seus discursos e passaram a defender o investimento do estado na vida das pessoas. Estado esse que, por meio das análises, imposição da narrativa, ajudaram a desmantelar para beneficiar o mercado financeiro.


Nesse momento, para manter a coerência dos seus discursos, não caberia aos “especialistas” econômicos da grande mídia estar exigindo a responsabilidade da iniciativa privada? Não deveriam estar defendendo que os bancos destinassem os seus lucros para a construção de hospitais e aquisição de utensílios necessários para salvar a vida das pessoas? Se a iniciativa privada tudo resolve, não deveria assumir a responsabilidade nesse momento? Cadê a mão invisível do estado para destinar dinheiro para as pessoas terem condições de sobreviver diante desse cenário que existe isolamento social? Enfim, essas perguntas, e tantas outras, se houvesse um mínimo de princípio ético, de sensibilidade entre os especialistas da grande mídia deveria permear qualquer discussão econômica. No entanto, não é possível exigir sensibilidade e ética de quem coloca em segundo plano à vida das pessoas para defender os interesses e o lucro do mercado financeiro.


Guarda as raras exceções, mas a grande maioria dos “especialistas” de economia da grande mídia não são, necessariamente, analistas do modelo econômico que domina o mundo ocidental há mais de 35 anos. Analista é todo aquele que observa o fenômeno, procura compreender e, se necessário for, não tem receio de tecer críticas. Entre os “especialistas” da grande mídia não há uma única crítica ao neoliberalismo. Se não há crítica não podem ser considerados analistas. O adjetivo correto é cúmplices. Nesse momento, que a coerência exige participação efetiva do mercado financeiro para assumir responsabilidades e ajudar a salvar vidas, os especialistas escondem o mercado financeiro, não há mais menção sobre a reação humana. Não sabemos se o mercado está nervoso, se está calmo, apreensivo, ou qualquer coisa do tipo. O mercado financeiro sumiu, desapareceu, virou pó, pelo menos na análise dos “especialistas”.


Embora, na prática, sabemos que o mercado financeiro, mesmo diante da pandemia, continua se beneficiando, não perdendo nenhuma oportunidade para lucrar diante da dor e da morte dos miseráveis[4]. Porém, no discurso quase hegemônico no Brasil, a narrativa do mercado financeiro que tudo resolve desapareceu. Escondê-lo faz parte da estratégia. Com isso, deseja-se que ninguém possa cobrar responsabilidade daquele que mais é responsável pelo caos social que nos encontramos.


Os economistas adeptos e cúmplices do neoliberalismo, defensores incontestes da redução do estado, hoje fazem de tudo para retirar o mercado financeiro de cena, porém, “amanhã”, depois de passar o período da pandemia, estarão defendendo novamente às medidas de austeridade. Os mantras neoliberais, redução do estado, estado mínimo, equilíbrio das contas públicas, mão invisível do mercado, iniciativa privada, entre tantas outras falácias que hoje estão sendo escondidas, “amanhã” aparecerão em uníssono nas análises dos “especialistas” da grande mídia.


Dificilmente teremos transformação da sociedade, a tendência é que o mundo continue normal, dominado pelo neoliberalismo que privatiza o lucro e socializa a pobreza. Se tudo continuar como antes provavelmente os economistas, defensores do estado, não terão oportunidade de apresentar suas leituras nos grandes meios de comunicação, continuarão fazendo um importante debate, mas nos espaços alternativos da mídia. Diante disso, cabe a nós fortalecemos a mídia alternativa por meio das redes de solidariedade, divulgando ao máximo às leituras que vão a contrapelo das análises hegemônicas dos “especialistas” representantes do neoliberalismo.


No século XXI torna-se cada vez mais necessário conseguir ocupar todos os espaços, disputar incansavelmente o campo da narrativa, mesmo quando partimos do subsolo, porque a resiliência significa possibilidade de transformação. Não resta dúvida, a transformação dificilmente acontecera agora, porém jamais poderá estar ausente do nosso horizonte.



Notas:

[1] Comentarista de economia da GloboNews e de outros veículos de comunicação do grupo Globo. Tem se destacado ao longo das últimas décadas por ser uma defensora do neoliberalismo. [2] Professor da Unicamp e comentarista de economia e editor-chefe da revista Carta Capital. Nos seus textos, Belluzo defende a importância da participação do estado, consolidando-se como um dos economias mais críticos do neoliberalismo. [3] A Empresa Brasil de Comunicação foi criada em 2007, segundo governo Lula, com o objetivo de ser uma alternativa viável aos conglomerados de comunicação no país. No entanto, apesar da importância da TV Brasil, para ficar somente no espaço televiso, a EBC nunca conseguiu, de fato, ser uma empresa pública que tivesse condições de alcançar os lares da população brasileira. Além da falta de investimento faltou para o Partido dos Trabalhadores acreditar verdadeiramente no projeto. [4] No dia 23 de março de 2020 o governo federal, por meio do Banco Central, anunciou um pacote de medidas para atender às reivindicações do mercado financeiro no valor de R$ 1,216 trilhões. O valor corresponde a 16,7% do PIB nacional. Alguns dias antes, o ministro da economia, Paulo Guedes, anunciava a proposta original do governo federal de R$ 200,00 reais para atender as demandas da população mais carente. Depois de algumas semanas, após muita crítica e propostas de reajuste da oposição, o projeto de ajuda à população mais vulnerável foi aprovado no valor de R$ 600,00. Entre mercado financeiro e população, o governo federal não teve dúvida, optou pelo primeiro.

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