Apesar de não ser geógrafo, o filósofo francês Henri Lefebvre (1901-1991) contribuiu ricamente com a ciência geográfica através de sua obra, propondo importantes reflexões sobre questões como a produção do espaço, as relações entre campo e cidade e a relação entre o urbano e o rural. Suas mais importantes obras foram escritas na segunda metade do séc. XX, mas, suas reflexões continuam pertinentes e atualmente sua produção bibliográfica continua sendo fundamental para pesquisas de geografia urbana. Considerado um filósofo marxista, Lefebvre busca pensar a realidade de forma qualitativa e processual, identificando as contradições e conflitos de classes presentes na produção do espaço através da lógica dialética, por isso, seu método de análise se enquadra na Geografia Crítica.
O espaço, categoria antológica da Geografia, é abordado por Lefebvre não apenas como palco físico onde ocorrem as ações, mas sim, como uma totalidade, produzido pelas práticas sociais de forma dialética. O espaço seria, portanto, ao mesmo tempo produto e produtor das relações humanas, sua materialidade seria o resultado das relações sociais de produção, bem como das disputas de classes.
O método de análise lefebvriano observa a produção do espaço através de um conjunto de tríades: o urbano, o cotidiano e o espaço / forma, função e estrutura / vivido, concebido e percebido / agrário, industrial e urbano e etc. As tríades em Lefebvre permitem, através de uma análise dialética, compreender o conflito entre forma e conteúdo a partir das mediações.
Em suas obras, Lefebvre teceu diversas críticas as ciências parcelares que, através de suas especializações em disciplinas, produziam um “campo cego”, ao analisar de forma separada a realidade, separando o campo e a cidade o espaço e as relações, o que para Lefebvre impedia uma análise da totalidade e encobria as estratégias de classe na produção do espaço.
Carlos (2020) aponta que a contribuição teórica de Lefebvre permite iluminar este “campo cego”, proporcionando à geografia urbana crítica a superação do entendimento limitado da cidade enquanto um quadro físico, um ambiente construído, possibilitando compreendê-la como uma “obra civilizatória, um produto social e humano”. Desta forma, é possível analisar a cidade como um trabalho materializado ao longo de todo o processo histórico como um resultado das relações sociais de produção. Seu método de análise contribuiu para que a Geografia crítica pudesse desvendar os processos de produção do espaço enquanto produção social e histórica, identificando os sujeitos produtores das segregações espaciais em uma sociedade dividida em classes.
A dialética presente no pensamento lefebvriano, inspirada pelos pressupostos da teoria marxista, revela que no modo de produção capitalista a reprodução social resultante dos interesses de classes e da divisão social e técnica do trabalho produz o espaço como uma mercadoria e dessa forma a cidade, obra da realização humana, também é transformada em mercadoria. A apropriação privada sobre o espaço promove uma substituição do valor de uso (a cidade como obra da realização das necessidades humanas) pelo valor de troca (a cidade como produto, apropriada e fragmentada em função da reprodução do capital), o que evidência as contradições e os conflitos de classe em torno da construção e da reconstrução da cidade.
Em sua obra “A Revolução Urbana”, Lefebvre produz uma distinção conceitual entre o urbano e a cidade. Para ele, a cidade seria a base material, arquitetônica, a forma concreta que tomou o processo histórico de divisão socioespacial, essa existiria desde a antiguidade resultante separação entre campo e cidade pela divisão social do trabalho. Já o urbano seria definido pela dinâmica das relações, das atividades e das centralidades desenvolvidas por “seres concebidos, construídos ou reconstruídos pelo pensamento” (Lefebvre, 1999, p. 54). Desta forma, Lefebvre propõe dois conceitos chave: o de “morfologia material” (a cidade) e o de “morfologia social” (o urbano). Ambos fundamentais para compreender teoricamente os processos de urbanização, pois compõem uma totalidade que abarca a sociedade e a forma como essa organiza o espaço. Para Lefebvre (1991), a cidade nunca pode ser pensada de forma separada da sociedade, “ela muda quando muda a sociedade em seu conjunto”. Porém, não de forma unilateral, podendo a cidade ser, também, condição que possibilite ou impeça as transformações sociais.
Lefebvre aplica a mesma lógica ao diferenciar os conceitos de campo e rural definindo o campo como morfologia material e o rural como a morfologia social. Entendendo o campo, principalmente as práticas rurais, como estágios primitivos do desenvolvimento das sociedades, Lefebvre defendia que através dos avanços das técnicas, da divisão do trabalho e da socialização ocorreria uma superação do modo de vida das práticas rurais, marcadas pelo atraso e pelas privações, dando lugar à uma vindoura sociedade urbana.
Estamos acabando hoje o inventário dos restos de uma sociedade milenar na qual o campo dominou a cidade, cujas ideias e “valores”, tabus e prescrições eram em grande parte de origem agrária, de predomínio rural e “natural”. Esporádicas cidades apenas emergiam do oceano do campo. A sociedade rural era (ainda é) a da não abundância, da penúria, da privação aceita ou repudiada, das proibições que dispunham e regularizavam as privações. (LEFEBVRE, 1991. p. 108)
Em oposição a esse modo de vida rural emergiria uma nova práxis de uma sociedade urbana, na qual a cidade seria a centralidade do desenvolvimento, da emancipação, da libertação e da abundância para a humanidade. Porém, esta sociedade urbana não se restringiria aos limites da cidade, ela seria totalizante enquanto um modo de vida, penetrando também no campo, subvertendo o antigo modo de vida agrário, através das transformações nos “sistemas de objetos e sistemas de valores” (Lefebvre, 1991. p. 19). Esse avanço do modo de vida urbano sobre o campo não eliminaria as distinções arquitetônicas e materiais entre a cidade e o campo, mas suas funções e conteúdos deixariam de expressar uma contradição e ambas comporiam o tecido urbano.
Tendo como base o materialismo histórico dialético de Marx, Lefebvre aponta a urbanização como resultado de um processo cumulativo das transformações sociais, econômicas e políticas no tempo e no espaço. Para tanto, Lefebvre divide estas transformações em fases, ou melhor em “eras”.
A era agrária como o período de ausência da urbanização é marcada por uma forte divisão entre o campo e a cidade, decorrente da divisão do trabalho, prevalecendo o valor de uso sobre o valor de troca, sendo as cidades (ilhas no meio de oceanos de campos) o local da reunião de povos. Para Lefebvre, as antigas cidades gregas e romanas tinham a política como principal função, estas cidades produziram as condições filosóficas para um posterior surgimento do Estado. Na fase feudal da era agrária a cidade deixa de ser apenas política, passando a desempenhar funções essencialmente comerciais, artesanais e bancárias.
Para Lefebvre o fim do feudalismo e as transformações advindas das revoluções burguesas, em especial a revolução industrial, deu início à uma nova era: a era industrial. As características desta era delimitada por Lefebvre são descritas por Azevedo da seguinte forma:
[...] os costumes e a cultura passam a ser inteiramente determinados pela produção econômica (determinismo econômico). O sistema de troca e comércio se generalizam e a indústria destrói a “urbanidade” da era agrária, reconstruindo-a através de uma escala ampliada e centralizadora, com novos objetivos e conteúdos. Cabe ressaltar que o determinismo do econômico sobre outras esferas: cultura, política, etc. também é uma expressão da dominância do Homem sobre a Natureza, da indústria sobre a agricultura, da cidade sobre o campo. (AZEVEDO, 2012. p. 12-13)
A era industrial promoveu significativas transformações na produção do espaço, alterando as formas, as funções e as relações para atender a lógica de reprodução do modo de produção capitalista. Nesta fase o valor de troca se impõe sobre o valor de uso e a cidade se transforma também em uma mercadoria, priorizando a acumulação de capital em detrimento das necessidades humanas. Tem-se então a instauração de uma relação conflituosa dentro da própria cidade industrial, no qual, de um lado temos a realidade industrial e de outro lado a realidade urbana (Lefebvre, 1991).
Pensando a realidade a partir das contradições e dos conflitos decorrentes dos interesses de classes na produção do espaço, Lefebvre, indica que estamos vivendo uma fase crítica da sociedade como um todo, na qual estaríamos em um processo de superação da era industrial produzindo as condições para uma virtual era urbana totalizante, uma sociedade urbana. Uma das principais características dessa era seria o retorno da cidade como “obra”, como realização social da vida, retomando o valor de uso, sendo novamente o local do encontro, da produção cultural da festa em oposição a lógica produtivista industrial. A era urbana para Lefebvre seria o resultado de uma ação revolucionária executada não apenas pelas classes operárias, mas também, pelos movimentos populares, pelos periféricos marginalizados e excluídos da fruição da vida urbana, dos benefícios da centralidade.
Lefebvre nos permite pensar o espaço no sentido de sua produção, apontando que no modo de produção capitalista ocorre a apropriação privada do espaço e, portanto, das cidades, transformando-as em valor de troca, em mercadoria. Seu método de análise nos permite compreender a cidade e o urbano como formas e relações que se realizam através de uma interação dialética decorrente das lutas de classes e das disputas pelo espaço.
Bibliografia:
ARAUJO, James Amorim. Sobre a cidade e o urbano em Henri Lefebvre. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº31, pp. 133 - 142, 2012.
AZEVEDO, Leon Martins C. O rural e o urbano na teoria de Henri Lefebvre. Na. da XIII Jornada de Trabalho. Presidente Prudente – SP. Out. 2012.
CARLOS, Ana Fani A. Henri Lefebvre: o espaço, a cidade e o “direto à cidade”. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, V.11, N.01, 2020, p.349-369.
LEFEBVRE, Henri. A revolução Urbana. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
_______________. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991b. [1968]
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