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Ideologia dominante, mídia hegemônica e o conflito entre Hamas e Israel



A filósofa Marilena Chaui, no clássico livro O que é ideologia[1], defende a tese de que a ideologia dominante está muito distante de ser a única ideologia, porém se constitui enquanto dominante porque é a ideologia das camadas mais abastadas da sociedade. Ou seja, é a maneira de ler, compreender e se posicionar daqueles que detêm o capital. Não resta muita dúvida de que essa leitura de Chaui poderá ser utilizada para compreendermos o modo no qual a opinião pública esteve condicionada a se posicionar sobre os mais diferentes fenômenos no decorrer do processo histórico.


A ideologia das camadas dominantes, e por isso mesmo uma ideologia dominante, formando e formatando a opinião pública para consensos sobre fenômenos complexos em sua essência, não podendo ser compreendidos a partir de uma leitura unicamente focada no tempo presente, teve e continua tendo como principal responsável para a sua consolidação os grandes meios de comunicação. No decorrer dos últimos anos, dois fenômenos podem ser apresentados como elementares para compreendermos o papel desempenhado pela mídia hegemônica enquanto vetores da ideologia das camadas dominantes.


O primeiro desses fenômenos encontra representação no conflito armado envolvendo Rússia e Ucrânia. Desde quando começou a surgir as primeiras informações de que o exército russo fazia movimentações com a intenção de invadir o território ucraniano, sob a justificativa de que na Ucrânia estava se formando uma quantidade impressionante de grupos neonazistas, tendo o Batalhão Azov enquanto um dos representantes da ascensão do totalitarismo, e de que as regiões anexadas pelo governo russo e de maioria étnica russa – Crimeia e Donbass - estavam sendo atacadas sistematicamente pelo exército e forças paramilitares ucranianas, e por último, na condição de um argumento do governo de Moscou, impossibilitar a entrada da Ucrânia na OTAN, sob liderança direta dos EUA, a mídia hegemônica brasileira, envolvendo jornais impressos de grande circulação e os canais abertos e fechados de televisão, procurou construir o seguinte consenso na opinião pública; Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano, na condição de um herói, e Vladimir Putin, consequentemente, um vilão.


Peço desculpas por apresentar uma leitura simplista, mas foi dessa forma que acompanhei a cobertura que foi e continua sendo feita pelos grandes meios de comunicação no Brasil sobre o conflito entre Rússia e Ucrânia. A capacidade de atuação e de formatação da opinião pública por parte da mídia hegemônica teve tamanha envergadura que declarações muito coerentes do atual presidente Lula, afirmando que tanto Rússia quanto Ucrânia eram responsáveis pelo conflito[2], sendo necessário encontrar um caminho do diálogo, do entendimento mútuo para se alcançar a paz, foi apresentada pelos grandes meios de comunicação como uma fala absurda/inaceitável. Na leitura da mídia hegemônica, Lula deveria ter criminalizado Putin e colocado no bastião dos heróis internacionais Zelensky.


No início do ensaio trouxe uma consideração da filósofa Marilena Chaui, evidenciando que a ideologia dominante não é a única que opera no contexto social, mas é dominante porque é a ideologia da classe dominante. No contexto contemporâneo, esse grupo dominante encontra-se representado pelos interesses dos países da União Europeia – Alemanha, França, Inglaterra – e, não menos importante, pelo interesse dos Estados Unidos. Os grandes meios de comunicação apresentam suas considerações sobre os conflitos a partir dos desejos, das vontades e das ambições dos países supracitados. A constatação pode ser identificada no conflito entre Rússia e Ucrânia, mas também pode ser deslocada para as análises que têm dominado a cobertura da mídia hegemônica no conflito entre Israel e o grupo palestino Hamas.


No último dia 7 de outubro acompanhamos o grupo palestino Hamas, que controla o pequeno território da faixa de Gaza desde o ano de 2006, lançar mísseis sobre o território de Israel, invadir, assassinar e sequestrar uma quantidade enorme de pessoas. Entre mortos e feridos, de acordo com o que foi noticiado, mais de 1.400 pessoas. O ataque do Hamas, evidentemente, deve ser repudiado por todas as pessoas que acreditam na possibilidade de viver em uma sociedade verdadeiramente humana, respeitando o estado democrático de direito. Tanto no dia 07 de outubro quanto nos dias seguintes ficamos lamentando a morte de civis israelenses, entristecidos com os relatos de mães que perderam seus filhos e suas filhas. A tristeza e o sentimento de compaixão para com os judeus é um gesto humano.


Diante do luto e da tristeza dominando o noticiário nas horas e nos dias seguintes ao ataque, passamos a acompanhar na mídia hegemônica uma tentativa de compreensão sobre o porquê do ataque do Hamas. A tentativa de compreensão é importante, não para justificar o ataque, mas para entender o porquê um pequeno grupo palestino se voltou contra uma das forças militares mais poderosas do mundo. Qualquer leitura e análise comprometida com a complexidade do acontecimento não se ocuparia de analisar o ataque do Hamas somente por ele mesmo, ou seja, voltando o olhar unicamente para o tempo presente, mas se utilizaria de uma leitura histórica para entender a relação conflituosa entre judeus e palestinos no território.


A relação entre os dois povos é de longuíssima duração, remontando ao período da Antiguidade. No entanto, peço licença aos leitores e leitoras desse ensaio para trazer o tempo histórico para mais perto e situá-lo no final da década de 40 do século passado. Mais especificamente para o ano de 1947. Depois do final da Segunda Guerra Mundial, caracterizada pela derrota do fascismo italiano e do nazismo alemão, do horror diante da perseguição e morte de milhões de judeus pelo regime nazista de Hitler, e a partir da criação da Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu-se pela criação do estado de Israel no Oriente Médio. O espaço destinado para ser o território do estado de Israel não se configurava como um espaço vazio, pelo contrário. Por séculos e mais séculos estava sob a ocupação dos árabes, mais precisamente pelo povo palestino.


Para termos uma dimensão do processo de divisão do território feito pela ONU, recorro às considerações de Reginaldo Nasser. No ensaio intitulado O Sonho do Retorno, o professor de Relações Internacionais da PUC/SP apresentou o seguinte cenário:


Em 29 de novembro de 1947, a Assembleia-Geral da ONU, com o apoio decisivo das grandes potências, aprovou a Resolução 181, que resultou no plano de partilha da Palestina. Os colonos judeus, antes proprietários de 6% das terras e 30% da população local (600 mil habitantes), passaram a ter 55% do território. Os palestinos, que representavam 70% da população (1,3 milhão), ficaram com os 45% restantes. Portanto, houve um processo violento de expropriação e expulsão de palestinos, marcando definitivamente a história desses povos[3].

A partir desse recorte, 1947, o que inúmeros/as pesquisadores/as têm demonstrado, com destaque para a Historiadora Arlene Clemesha[4], encontra representação no fato de que o estado de Israel implementou uma política de colonização sistemática nos 45% do território que seria de direito, de acordo com a Assembleia-Geral da ONU, do povo palestino, expulsando-os de suas casas, de suas terras, produzindo uma limpeza étnica na região e levando milhões de palestinos a se refugiarem nos países vizinhos ou viverem como refugiados em seu próprio território.


No tempo presente, não é exagero afirmar que os palestinos vivem como estrangeiros em sua própria terra. A própria Faixa de Gaza, quando nesse momento que escrevo está sendo bombardeada incessantemente pelo estado de Israel, é habitada majoritariamente por refugiados palestinos, que desde o final da década de 1940 têm sido expulsos das suas terras e casas pelos colonos judeus e se concentrando em uma pequena faixa territorial que abriga mais de 2 milhões de pessoas. Uma população extremamente jovem, quando a média de idade é de 17 anos e uma parcela considerável dessas pessoas é constituída de mulheres e crianças.


A vida na Faixa de Gaza é extremamente precária. De acordo com Reginaldo Nasser, com referência ao ensaio mencionado anteriormente: “(...) 97% da água na Faixa de Gaza é considerada imprópria para o consumo, mais da metade da população vive abaixo da linha da pobreza, 80% dependem de ajuda externa e 64% dos jovens estão desempregados”. A vida para a população palestina tanto na Faixa de Gaza quanto na Cisjordânia é caracterizada pela precarização. No entanto, ao contrário da tese apresentada na narrativa da mídia hegemônica, a precarização da vida da população não é resultado do acaso ou em decorrência da administração errônea do Hamas. A condição de miséria na contemporaneidade é uma consequência direta da política colonial adotada pelo estado de Israel desde 1947.


Qualquer análise distante da leitura histórica, não evidenciando as consequências da política colonial do estado de Israel, apresentando o conflito como se a origem fosse o último dia 7 de outubro é, na melhor das hipóteses, desonesta. Porém, a análise em vigência nos grandes meios de comunicação não é desonesta, pelo contrário, é diretamente comprometida com os interesses da ideologia dominante. A saber, comprometida com a Ideologia das grandes potências econômicas e militares do Ocidente; EUA, França, Inglaterra e Alemanha.


Ao reproduzir a ideologia dominante como se fosse a única aceitável, Israel é apresentado na condição de um país que foi atacado e, diante disso, tem o famigerado direito de defesa contra o Hamas. Em contrapartida, o grupo palestino é apresentado pela mídia hegemônica como sendo terrorista, mesmo que a ONU não o classifique dessa forma[5]. A partir da classificação de terrorista, na leitura dominante, o Hamas tem que ser destruído independentemente das consequências que o processo de destruição resultará. As consequências, conforme temos acompanhado, têm sido uma política de genocídio praticado pelo estado de Israel contra a população civil árabe, resultando na morte de milhares de civis palestinos. Em sua maioria, mulheres e crianças.


A morte dos palestinos, no noticiário da mídia hegemônica no Brasil, parece ter muito menos valor do que a morte dos judeus. Todas as vidas deveriam ter a mesma importância, mas essa constatação está muito distante de prevalecer na ideologia dominante. Existe um processo de desumanização dos palestinos operando na cobertura da imprensa nacional. O processo de desumanização fica evidente quando acompanhamos comentaristas indignados com a possibilidade de haver um cessar fogo ou mesmo um corredor humanitário na Faixa de Gaza. Se valendo de uma pulsão de morte, especialmente se o morto for palestino e muçulmano, não tem nenhum receio de afirmar que a interrupção do ataque por parte do estado de Israel representaria uma vitória do Hamas[6].


Se valendo do exemplo apresentado no parágrafo anterior, estando muito distante de ser uma exceção, temos acompanhado o modo no qual a mídia hegemônica brasileira tem procurado formar a opinião pública em torno de um consenso. Nesse consenso, totalmente influenciado pela ideologia dominante, a vida dos palestinos não têm o mesmo valor que a vida dos judeus. A morte dos judeus tem rosto, tem história e a dos palestinos são representadas por números. Os judeus foram mortos pelos terroristas do Hamas, porém os palestinos foram encontrados mortos. O governo de Benjamin Netanyahu, de extrema-direita, é apresentado como se fosse um governo democrático e responsável com os direitos humanos, seguindo todos os tratados internacionais. Na outra esfera encontra-se o Hamas, quando na leitura da mídia hegemônica, não respeita tratado internacional algum e é um grupo terrorista.


No mesmo sentido, procurando alcançar o mesmo objetivo, o genocídio do povo palestino é apresentado como direito de defesa do estado de Israel, e o conflito deixa de ser histórico e passa a ser explicado unicamente pelo ataque do Hamas no último 7 de outubro. Quando a temática envolve o conflito entre o estado de Israel e os palestinos é fundamental olhar para o passado para encontrar condições de compreender o presente. Quando olhamos para o passado identificamos um estado de Israel implementando um projeto colonial, não respeitando os tratados internacionais, expulsando palestinos dos seus territórios, produzindo uma política genocida e uma limpeza étnica na região. Quando olhamos para o presente acompanhamos uma população enorme isolada em uma pequena porção de terra, convivendo com a fome, com a falta de água, com a miséria e com pouca expectativa/esperança de ter direito a uma vida digna.


Sobre o papel desempenhado pelos grandes meios de comunicação, procurando criar um consenso em favor dos interesses da ideologia dominante, dificilmente compreenderemos o fenômeno se entendermos enquanto resultado de um recorte recente. O comportamento da mídia hegemônica, não somente no Brasil, mas em vários outros países do Ocidente tem um lastro histórico. Por exemplo, o ativista pelos direitos humanos e uma das vozes mais importantes por justiça social e igualdade racial Malcolm X, identificou o modus operandi da imprensa estadunidense no contexto de meados do século passado, fazendo a seguinte afirmação: “Se você não tomar cuidado, a mídia fará você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas e amar as pessoas que estão oprimindo”. Não resta muita dúvida de que a constatação de Malcolm X continua ecoando com toda a intensidade no tempo presente. Não tem faltado esforço da mídia hegemônica para criar um consenso favorável ao opressor.


Por último, ressalto que a defesa constante de todas e de todas deve ser pela paz. No entanto, a paz somente será alcançada quando o povo palestino tiver direto a um estado autônomo, livre e independente.


Notas:

[1] Consultar CHAUI, Marilena de Souza. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.

[2] A primeira declaração do Presidente Lula, tendo uma leitura mais crítica sobre o conflito, colocando os dois países como responsáveis pela guerra, aconteceu em uma entrevista concedida ao jornal espanhol El País. Entrevista publicada no dia 27 de abril de 2023, podendo ser acessada no seguinte endereço; Lula da Silva: “Cada bando quiere ganar y muchas veces una guerra no necesita un ganador” | Internacional | EL PAÍS (elpais.com)

[3] Ensaio publicado na edição nº 1281 da revista Carta Capital.

[4] Referência a entrevista da Historiadora e Professora da USP, Arlene Clemesha, especialista sobre o Oriente Médio, concedida ao jornalista Breno Altman, no canal do Opera Mundi no YouTube. Link da entrevista; ISRAEL VAI AO GENOCÍDIO NA FAIXA DE GAZA? - ARLENE CLEMESHA - PROGRAMA 20 MINUTOS - YouTube.

[5] O Brasil, seguindo às diretrizes da ONU, não classifica o Hamas como grupo terrorista. Maiores e melhores informações podem ser encontradas na seguinte matéria: Brasil segue ONU e não reconhece Hamas como terrorista, afirma Lula | CNN Brasil.

[6] O comentário menosprezando a vida dos palestinos pode ser acompanhado no seguinte endereço: VÍDEO: Jorge Pontual defende extermínio palestino e provoca revolta nas redes - Revista Fórum (revistaforum.com.br)

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