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Isolamento social ou isolamento físico: Algumas reflexões



Em tempos de pandemia, quarentena e isolamento físico, estar em casa a todo tempo torna-se um desafio árduo para muitas pessoas. A nossa rotina mudou e junto a essa metamorfose do cotidiano nossas interações sociais estão sendo substancialmente testadas, criando uma nova possibilidade de formulação de códigos e linguagens. Penso que o momento atual fornecerá matéria-prima para uma valiosa contribuição em estudos e pesquisas nas mais variadas áreas do conhecimento, principalmente em sociologia, psicologia e antropologia. Em prognóstico não muito distante, teremos a condição e a capacidade de compreender o presente com dados e informações científicas, pautadas em verificações e observações eminentemente confiáveis.


Diante desse panorama, ficar em casa tem sido, como mencionei anteriormente, um enorme desafio. Embora vivemos em um mundo conectado, preenchido de “presenças” virtuais, onde os valores são sopesados pelo “curtir” e o “compartilhar”, onde o internetês se tornou a linguagem mais utilizada no cotidiano, estar sozinho não significa estar isolado. Este último, termo caro à contemporaneidade e que evoca muitas discussões. A máxima aristotélica nunca esteve tão patente, ao afirmar que somos todos animais políticos, entendendo por política a arte que se caracteriza pela negociação, pelas relações sociais.


Somos seres sociais, políticos, dependentes da interação um com o outro para nos preenchermos e nos completarmos. A ideia de isolamento físico constitui, dessa forma, uma barreira invisível que impede, em certas circunstâncias, o fluir de uma pequena, mas importante característica de nossa essência: a sociabilidade direta. No prenúncio dessa crise, percebemos aflorar cotidianamente nossa dependência do contato físico, do aperto de mão, do abraço, do beijo, etc. Por mais que este seja um impedimento de um saber-poder na acepção de Foucault, cujas medidas restritivas de circulação e aglomerações são necessárias para mitigar a proliferação do vírus (Covid-19), necessitamos de calor humano.


Mesmo em ambiente doméstico, ao lado de nossos familiares, dificilmente não temos alguém, neste momento, externo a esse ambiente doméstico, para o qual desejaríamos dar aquele caloroso abraço ou mesmo um aperto de mão firme e um beijo sincero. São condições empíricas de nossa vida cotidiana que efetivamente reforçam e retroalimentam nossas relações e vínculos com o outro. Até mesmo nas relações objetivas, o contato diretamente físico é pré-requisito de confiabilidade e prévia aceitação. Em grandes negociações financeiras, costuma-se, como elemento de legitimidade moral, as partes apertarem as mãos, mesmo o acordo constar legalmente em um contrato de papel e nele constar as assinaturas. Este é apenas um exemplo entre tantos outros.


O cenário atual também revela outra reflexão importante. Os espaços da sociabilidade direta, incorporados em nosso cotidiano e componente natural de nossas rotinas particulares, foram, ao menos temporariamente, limitados. Sejam de diferentes configurações geográficas ou arquitetônicas, sejam de múltiplas funções ou segmentos, ambientes antes lócus de nossa interação, tais como, restaurantes, bares (ou o popular boteco), universidades, escolas, praças, museus, parques, lojas, shoppings, entre outros, passaram a ser alvo de nossas ambições e desejos nostálgicos. Sendo as redes sociais um termômetro desse mundo de desejos e ambições, não seria difícil entender a quantidade exorbitante de memes e figurinhas saudosistas dos espaços mencionados.


Um dia desses vi um meme no Instagram que trazia a imagem do heroico e emblemático Chapolin Colorado com a seguinte frase: “verdades dessa quarentena: nunca mais eu falto a um rolê”. A urgência do “rolê” possivelmente materializada em um dos espaços da sociabilidade direta, caracteriza a inerente necessidade que temos de interação e contato físico. A sociabilidade é uma condição humana sem a qual não podemos compreender as sociedades e suas formas constitutivas, tanto do ponto de vista histórico, quanto do ponto de vista sociológico.


O desejo de retomada do “normal” é um desejo que entendo embebido da ideia platônica de ausência. O desejo, nesse sentido, é falta. Termo que pode variar semanticamente: carência, abstinência, escassez, privação etc., do quê? De contato físico, dos olhares improvisados, dos flertes, da paquera, das rodas de conversas, do futebol etc. Sentimos, neste momento em especial, ausência, falta, carência, abstinência, escassez. Desejo de retomar nossos espaços de sociabilidades e neles reproduzirmos e reforçarmos nossas interações físico-sociais.


A despeito da profundidade teórica que envolve a discussão sobre as sociabilidades, dificilmente encontraríamos nos manuais de antropologia e de sociologia algo diferente, indicando que a nossa substancial distinção para com as outras espécies de animais existentes no planeta fosse algo distante de nossa capacidade de interagir e construir vínculos sociais. A contragosto do que muitos especialistas afirmam, mesmo considerando seus pontos de vista, não acredito que o acelerado avanço das mídias e redes sociais venham, em um futuro mesmo que distante, cimentar as formas e os meios de interação física e social. Pensar nisso é quase uma irracionalidade. De fato, podemos levar em conta as metamorfoses que decorrem desses processos digitais, levando a discussão a um plano mais crítico.


Desse modo, devemos pensarmos de forma crítica em como as redes digitais, sociais e midiáticas, assim como outras, interferiram, interferem e continuarão a interferir nas relações sociais e humanas. Grande contribuição a esse debate, penso eu, é a cosmovisão que crê numa alteração das relações e interações sociais e físicas a partir de uma perspectiva de fluidez, de liquidez, pensamento que tomo de empréstimo do sociólogo polonês Zygmunt Bauman.


Por essas e outras razões, e embora não haja um debate proeminente e consistentemente formulado a respeito dessa premissa, acredito que as condições atuais que vivenciamos estejam mais associadas a isolamento físico do que propriamente dito, social. Explico. Na iminente situação, de termos que nos isolarmos devido à proliferação geométrica de um vírus que ainda conhecemos muito pouco, seguimos as recomendações e diretrizes de órgãos e autoridades sanitárias. Com efeito, por razões de segurança e de saúde pública, devemos buscar o isolamento, justamente porque é uma necessidade urgente. Sendo esse isolamento oriundo de medidas necessárias para a manutenção da saúde da maioria, constitui-se em um distanciamento que é físico, porque é momentâneo e temporário, fruto de um saber-poder científico.


O isolamento social, que é o termo corrente utilizado, aplica-se, de modo geral e com maior frequência, a comportamentos introspectivos, de limitações à interação social do indivíduo ao grupo, entre outras possibilidades. Isso significa um alto índice de pessoas que apresentam dificuldades de estabelecer relações sociais, mas não interações físicas, campo do saber de ciências como a psicologia, a psiquiatria, a antropologia e a sociologia. Como defendeu em artigo recente, Eliane Brum admite que o isolamento social é grave, provoca solidão e dilacera relações. Ele (o isolamento social) é, diferentemente do isolamento físico, determinado por fatores de ordem diversas, mas que se restringem a estrutura: privilégios de classe, desigualdade social, disparidade de renda, segregação, preconceito, entre outros.


Há no isolamento social algo semelhante a um movimento pendular, contínuo, intermitente. Isolamento físico é efêmero, transitório, provisório. De qualquer modo, haverá muito a se discutir e a refletir sobre as novas sociabilidades que vão emergir no mundo pós-coronavírus. Admitir um estado de normalidade após tudo isso passar, é ingênuo e perigoso. Retornaremos sim, gradualmente, a estabelecermos nossos contados e interações físicas de outrora. Repensaremos, em contrapartida, nossos valores e prioridades. Em um mundo em que as informações circulam com rapidez, exigindo despoticamente replicação e compartilhamentos (daí a reprodução exorbitante de fake news), estar atento às pequenas sutilezas das relações sociais é um ganho de consciência crítica.


Não receio em dizer que estamos hoje, em meio a quarentena e isolamento social (ou seria físico?), presenciando um verdadeiro experimento sociológico.

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