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Foto do escritorJean Carlos

Lugar de Fala


Em muitas situações e momentos determinados, procurei quase sempre expressar minhas opiniões a respeito dos mais diversos temas, sejam eles considerados ‘tabus’ ou não. É verdade que procuro sempre pautar-me pela coerência e a razão quando tento construir uma opinião, no sentido de valer-me de argumentos que possam conter substância e conteúdo. Nas últimas semanas, porém, me mantive distante do debate político que se trava no momento que vivenciamos, muito em parte pela exaustiva e desgastante correria do dia a dia, fato este que nos oblitera, em muitos casos, de participar ativamente das discussões e reflexões das mais variadas estirpes.


Independentemente do tema colocado em pauta, procuro sempre pela coerência, como disse anteriormente. Essa palavra tem uma importância crucial para mim. Ser coerente corresponde a demonstrar conexão com aquilo que se pensa e se pratica. Corresponde, ainda, na ideia geral de conformidade entre ideias e fatos, de exercer concretamente aquilo que acreditamos e defendemos. Quando procuro a coerência, tento, de diversas formas e meios, elucidar a quem me ouve ou lê meus textos, de clarificar o meu lugar de fala, o ponto de referência de onde expresso e concedo minhas opiniões. De modo mais simples, quando falo e expresso opiniões, levo sempre em consideração e em primeiro lugar o meu contexto de vida, a minha posição dentro dos diferentes segmentos sociais que compõem nossa sociedade.


Nesse sentido, não posso negar o meu lugar de fala. Isso seria incoerente primeiro, comigo mesmo e, segundo, com minhas ideias e opiniões. Nasci e continuo sendo filho de trabalhador. Meus pais sempre lutaram para que eu tivesse uma boa educação, com um futuro digno e promissor. Sou filho de pai e mãe que sempre trabalharam duro, diariamente, quer seja na roça de melancia ou mesmo como diarista em casa alheia. Sempre estudei e continuo estudando em escola pública. Quando cursava a faculdade de História, trabalhava em uma loja de materiais para construção, em um tipo de trabalho que exigiam esforço físico ao relento e à constante exposição ao sol. No final do expediente, corria para casa com o intuito de tomar um banho rápido e, quando muito, comer alguma coisa para pegar o ônibus que nos levaria à universidade em outro município que não o meu.


Como sempre fui dedicado e aplicado aos estudos - que aliás, para um filho ou filha de um trabalhador(a) é talvez a única forma de poder vencer na vida, tanto humanamente quanto materialmente – procurava ler os textos da faculdade nos intervalos das aulas enquanto a maioria de meus colegas curtia o intervalo para lanchar e conversar. Quando chegava em casa, por volta de meia noite, coava meia garrafa de café e iria ler o que desse até por volta de uma e meia ou duas da manhã, para, no dia seguinte, às sete horas da manhã, já estar no trabalho. Durante os quatro anos de curso, fui bolsista de iniciação cientifica e ‘permanência’. Algo que para mim era fundamental. Inúmeras vezes eu tinha que escolher entre comprar um lanche ou os textos para as aulas. Por essa razão é que a condição de bolsista foi essencial para minha manutenção e permanência na universidade.


Assim que terminei a graduação, incentivado por professores que hoje se tornaram amigos e colegas de trabalho, realizei processo seletivo de mestrado, ao qual fui aprovado. Nos primeiros seis meses de curso, no qual me encontrava desempregado, quase desisti. Se não fosse minha família, especialmente minha mãe, meu irmão e minha avó, não teria continuado. Após os seis meses, fui contemplado com uma bolsa de estudos no valor de mil e trezentos reais, algo que tão somente um filho de trabalhador(a) sabe da importância e do valor. Naquele momento (não que eu tenha ficado rico, ou coisa do tipo), pertencia a uma parcela mínima da sociedade que tinha a oportunidade de cursar mestrado e ainda receber uma bolsa de estudos cujo valor chegava, inclusive, ser superior à renda de muitas famílias de trabalhadores e trabalhadoras neste país. Logo, finalizei o mestrado e comecei a lecionar. Hoje sou professor com muito orgulho e tiro o meu sustento e o de minha família graças aos meus pais e a universidade pública.


Eu poderia continuar, mas não quero que este texto se torne, o que no meio do caminho já se tornou, uma autobiografia. Fiz este relato não para vanglória. Até porque essa realidade é a de muitos trabalhadores e trabalhadoras. Mas o fiz no sentido de poder valer-me do lugar de fala, ou seja, de ponto de referência ao qual expresso minhas opiniões. Sendo filho de trabalhadores, não posso deixar de negar a importância de uma escola pública, de uma universidade pública, de uma bolsa de estudos. É por esse ângulo e viés que opino e expresso minhas ideias.


Diante disso, penso ser necessário ter coerência neste momento tão importante da nossa vida cidadã e política. Durante todo curso de História, aprendi que figuras personalistas, salvadores da pátria e heróis não são a solução para os problemas sociais, econômicos e políticos de um Estado ou uma nação. Os exemplos históricos são claros e largamente conhecidos por todos, em um contexto em que a personificação pessoal como instrumento de resolução dos problemas socioeconômicos acaba em fascismos e ditaduras. Em grande medida, aqueles que mais sofreram com os regimes ditatoriais e totalitários foram os mais pobres, enfim, os trabalhadores.


Diferentemente do que muitos acreditam e defendem, inclusive daqueles que me rodeiam e me cercam cotidianamente, não acredito e não penso que a solução seja o retorno ao fascismo e à ditadura, uma vez que tivemos essa horrível experiência ao longo de nossa história. Jair Bolsonaro representa o ódio, a violência, a repressão, a intolerância e o fascismo. Eleger Jair Bolsonaro é um retrocesso faraônico. Não acredito que alguém que se auto intitula o salvador da pátria e o herói da nação consiga de fato promover o bem-estar social, diminuir a desigualdade social, promover o respeito e a tolerância, nem mesmo administrar um país de dimensões continentais, com uma diversidade cultural e étnica como a nossa. O meu lugar de fala coerentemente me impossibilita o apoio, no dia 7 de outubro, a uma ideia radicalizante, totalitária e fascista.


Não acredito nos princípios defendidos pelo candidato mencionado. Não penso que o problema da segurança será resolvido com a ‘mística do armamento’, muito menos tolhendo os direitos humanos. Não posso e não quero acreditar que meus direitos como trabalhador, que foram conseguidos mediante um processo histórico que custou muito sangue e muita luta, sejam tirados. Não posso pensar em algo diferente ao respeito à diversidade, quer seja religiosa, de gênero, de opiniões e etc.


A condição de filho de trabalhador que buscou sempre vencer na vida por meio de muito esforço e estudo me torna coerentemente, contrário essa ideia, que na verdade é um projeto conservador e autoritário que representa a semiótica Jair Bolsonaro. Não posso ir contra o meu lugar de fala, seria incoerência de minha parte. Muitos e muitas tirarão suas conclusões. Uns dirão que por não apoiar Jair, estou do lado do PT, já que vivenciamos uma polarização radical nestes tempos. Afirmo, tenho outras opções. Em relação ao PT, existem falhas que foram cometidas e críticas que precisam ser tecidas, mas desde que sejam tecidas a partir do debate de ideias e não de pedras. Reconheço sim os equívocos do PT, mas também reconheço, que no momento mais indefinido de minha vida, este mesmo que relatei a pouco, foi graças às ações dos governos petistas que pude, de fato, estudar em escola e universidade pública, cursar mestrado (ambos com bolsa de estudos) e ter um trabalho e uma vida digna.


Por fim, este texto expressa apenas uma opinião, um posicionamento, algo que está garantido na constituição deste país. Não estou expressando o ódio ou a intolerância de quem pensa diferente, ao contrário. O debate de ideias faz parte da democracia, e é por ela que, penso, acredito e defendo, devemos lutar diariamente. Não crio inimizades muito menos excluo de meus relacionamentos cotidianos aqueles ou aquelas que diferem política e ideologicamente de mim.


Em tempos de intolerância e emprego do ódio, terminarei citando uma frase de um filósofo francês do século XVIII que gosto muito: “Posso até não concordar com o que você pensa, mas defenderei até a morte o seu direito de pensar” (Voltaire).

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