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Maradona, um Deus, humano



Dizem, as boas e más línguas, que no futebol alguns acontecimentos não podem ser explicados. O motivo, de não haver explicação, é que nossa razão humana não consegue explicar acontecimentos que são de outo mundo. Mas, que outro mundo é esse? Sinceramente, não sei. Dizem que é o mundo dos deuses, dos deuses do futebol.


Quem não se lembra daquela bola que percorreu graciosamente a linha do gol, mas não entrou, daquele gol que até nós, os famigerados pernas de pau, faríamos, porém, inexplicavelmente foi perdido pelo craque do time. Quem não se lembra? Todos os times tiveram ou têm os seus craques. Na minha infância, o craque da escola atendia pelo nome de Leandro, que fazia de tudo com la pelota.


Ah, como eu sonhei em ser craque, pelo menos parecido com o Leandro. No máximo, fui um zagueiro esforçado. Quando nasci, os deuses do futebol não disseram: “Esse é o cara”. Devem ter dito: “Esforçado”. Tudo bem. Ainda sobre os deuses, falamos tanto, mas, curiosamente, não conhecemos quem são, de onde vieram, se já jogaram, se foram feras mesmo, ou se foram iguais a nós, esforçados. Se bem que, por serem chamados de deuses, devem ter jogado muito. Prefiro essa última hipótese, é mais romântica. Segundo o ditado popular, para toda regra existe exceção, não é verdade? Talvez tenhamos dificuldade para nominar os deuses do futebol, mas dificilmente teremos problemas para dizer, em alto e bom som, quem foi o verdadeiro Deus do futebol.


A primeira vez que ouvi o nome Maradona, lembro que o som saiu da boca do meu pai. Meu pai adorava contar estórias do tempo que corria atrás de uma bola de futebol. De forma muito similar, também tinha sido um zagueiro esforçado, provavelmente mais esforçado que eu. Entre os craques que puxava pelo fio da memória, sempre tinha espaço para os craques anônimos que povoavam a memória do velho. Entre aqueles que poucos se lembram, um sempre me chamou atenção, Maradona. Sei que tinha um nome antes, porém, infelizmente, não recordo qual.


Maradona, excepcional jogador da região da Cibele, Baú e do Batistão, sempre povoou o meu imaginário, fazendo jogadas épicas, deixando adversários pelo caminho e entrando, como dizem, com bola e tudo para dentro do gol. Maradona foi um craque, e nas histórias contadas por meu pai, nunca perdeu um gol se quer. Há, como eu já lamentei por não ter visto Maradona, humano, jogar futebol. Esse nome sempre soou e ressoou nos meus ouvidos de forma lúdica, embora meus olhos jamais tiveram a oportunidade de vê-lo.


Lembro, como se fosse ontem, da primeira vez que tive a chance de ver Maradona. Eu morava no meio rural, não tinha acesso à Internet, e com a obrigação de fazer uma pesquisa para um trabalho qualquer da escola. Levantei cedo, peguei o ônibus em direção a cidade de Itapuranga. Desci na rodoviária e rumei em busca de uma Lan House. Entrei na Lan House mais envergonhado que o goleiro na hora do gol, e fiz o pedido para colocarem meia hora de Internet. Tempo suficiente para pesquisar e fazer o trabalho. Paguei um real. Sentei na frente da tela e não sabia, se quer, colocar a mão sobre o mouse.


Envergonhado, não tinha coragem de pedir ajuda. Fiquei uns 15 minutos parado, e mais cinco criando coragem. Faltando dez, levantei e fui ao encontro do rapaz da Lan House. Como era muito cedo, só estava ele e eu no estabelecimento. Lembro que estava sentado de frente para um computador que ficava afastado dos demais. Quando me aproximei, percebi que estava usando um fone grande de ouvido e assistindo um vídeo qualquer. Para que pudesse me ajudar, teria que me aproximar ainda mais. Aproximei e sem que fosse notado, notei que o rapaz estava vendo um vídeo sobre futebol. Jogadas Incríveis estava na descrição. Como não tive coragem para pedir ajuda, fiquei vendo aquelas jogadas que passavam lentamente pela tela do computador.


Tive a oportunidade de ver o anjo das pernas tortas com os seus dribles desconcertantes, vi um tal de Divino romper barreira com passes de outros mundos, Sócrates com o punho estendido, e vi, também, um jogador de baixa estatura subindo mais alto que o goleiro de quase dois metros e fazendo um gol inexplicável. Antes de ser notado pelo rapaz, ainda consegui ver esse mesmo jogador driblar um time inteiro e fazer um gol épico, capaz de levar às lágrimas o grande Victor Hugo Morales.


Antes de ter a atenção chamada pelo rapaz, não por estar vendo o vídeo, mas porque o tempo havia acabado, lembro que só deu tempo para ver o nome do jogador que subia mais alto que o goleiro, que driblava o time todo, ou quase todo. Maradona, Maradona. Que coincidência, o mesmo nome do meu ídolo humano. Voltei para casa sem trabalho da escola, no entanto, com mais um Maradona na mente. Agora eram dois, um da memória afetiva, e outro, o baixinho, que subia mais alto que o goleiro.


Como morava no meio rural, demorei para rever Maradona. Embora as duas jogadas martelavam dia e noite, não saíam mais da mente, suplantando, aos poucos, às imagens que construí na mente do Maradona humano. Quando consegui rever as jogadas, já conseguia compreender o contexto e todos os fatores políticos, sociais, coloniais e, posteriormente, decoloniais, que envolviam os dois gols contra o forte time da Inglaterra nas quartas de final da Copa do Mundo, realizada no México.


Maradona, Deus latino-americano, vencendo os invencíveis ingleses. Derrotando àqueles que os ditadores argentinos não haviam conseguido quatro anos antes. Maradona, sozinho, conseguiu. Conseguiu porque não era, nem de longe, humano. Estamos falando de um verdadeiro Deus.


Revendo, com calma, a jogada do primeiro gol, não mais assombrado pelo rapaz da Lan House, percebi que o gol não tinha sido de cabeça. Maradona havia transgredido às regras do jogo, rompido com as normas vigentes, subindo com o punho estendido e feito o primeiro gol contra os ingleses. O gesto do Deus latino-americano que ergue o punho para consumar a vitória sobre o colonizador ficou imortalizado como la mano de Dios. A expressão não poderia ser melhor. De fato, o gol foi com a mão de Deus. Deus Maradona.


E o segundo gol, no estádio Asteca, que pintura. O fato de Maradona ter driblado meio time inglês, e entrado quase com bola e tudo para dentro do gol, somente foi possível porque outra divindade, Montezuma, ajudou. Naquele gol, Maradona foi empurrado pela divindade Asteca. No momento que o Deus latino-americano driblava alguns adversários, Hérnan Cortéz entre eles, Montezuma impedia, com sua força de guerreiro, que os outros ingleses chegassem perto de Maradona para roubar-lhe a bola. Depois do jogo, Montezuma estendeu alegremente o tapete do estádio Asteca para um Deus ainda maior. Maior que todos os deuses. Se é maior que todos os deuses, impossível querer compará-lo com os jogadores desse mundo.


Nos últimos dias têm circulando no noticiário que Maradona morreu. Infelizmente, a notícia é verdadeira. Perguntei meu pai, e ele me confirmou que Maradona faleceu já tem uns dez anos. Que pena, não tive oportunidade de conhecer o meu ídolo de infância. Descanse em paz, Maradona. Os mortais, morrem.


Porém, antes de finalizar, somente uma advertência, os deuses nunca morrem. Se os deuses não morrem, imaginem o verdadeiro Deus. Sobre Maradona, até Nietzsche, se vivo estivesse, concordaria que o verdadeiro Deus não pode ser morto. Os amantes do ludopédio fazem questão de mantê-lo vivo. Maradona, Deus latino-americano. Maradona de la gente.

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