Imagem: Laerte
No segundo semestre de 2019, mais precisamente no dia 02 de agosto, tive a oportunidade de ler o artigo Doente de Brasil, autoria de Eliane Brum, colunista do El País. No texto, Brum apresentava a ascensão de uma nova patologia que estava surgindo no país, a saber, Doente de Brasil. Acompanhando um grupo de pessoas que se reuniam para compartilhar angústias, dores, princípios de depressão, medo e outras mazelas oriundas das ações do governo Bolsonaro, Brum apresentou essa nova patologia que estava acometendo cada vez mais brasileiros.
Ao ler o artigo, momentaneamente tive empatia com as pessoas que estavam doentes de Brasil, precipuamente porque os sintomas da doença eram muito parecidos com alguns sintomas que não me deixavam em paz. Eu sentia raiva, vontade de ficar isolado, a insônia havia se apoderado do meu corpo como nunca antes, dificuldades de concentração e muito, mas muito medo.
Tendo passado alguns dias da leitura, pensando nos sintomas descritos no artigo, imaginando as diferentes expressões de angústia dos doentes, refletindo sobre os sintomas que dominavam o meu corpo, tive coragem e fiz um autodiagnóstico. Ao fazê-lo, constatei a minha doença. Lamentavelmente, eu estava doente de Brasil. Os sintomas eram iguais àqueles que apareciam no artigo. Pensei no autodiagnóstico algumas vezes para ter certeza. Confesso, no início tentei negar a minha doença, tentativas em vão.
Com o passar do tempo os sinais foram se intensificando. Além do medo, do princípio daquilo que imagino ser depressão, passou a me acompanhar um sentimento de indignação, talvez até de raiva, como nunca antes havia se passado comigo. Dia após dia, fala após fala, observando as políticas destrutivas do governo Bolsonaro, eu fica mais indignado ao saber e me lembrar de algumas pessoas próximas que haviam votado em Bolsonaro. O sentimento de indignação, ou mesmo de raiva, sei lá, era destruidor. Foram várias noites perambulando sem dormir, percorrendo todos os cantos da casa, acordando esposa e filhos, na tentativa de encontrar respostas sobre os motivos que levaram pessoas, até então, amigos/as, familiares, a terem votado em Bolsonaro.
Pensava em tudo, ascensão da extrema direita no mundo, Steve Bannon, pensava nos fenômenos estruturais latino-americanos, colonização, genocídio da população indígena, escravidão, golpes, ditaduras, patriarcado... Não deixei de pensar nos fenômenos recentes entrelaçados ao passado, a saber, racismo estrutural, ascensão das igrejas neopentecostais, ganâncias das elites dirigentes, golpe de 2016. Enfim, pensei em tudo. E para não dizer que não falei das flores, parafraseando o grande Vandré, me veio à mente os erros da esquerda ao longo dos últimos anos, mormente, o distanciamento das bases sociais, incapacidade para enfrentar o sistema, conciliações, alianças, dificuldade de diálogo e assim por diante.
Na tentativa de buscar respostas me contentei com a tese do embrutecimento social, possibilidade de amalgamar o processo histórico e o tempo presente, como explicação do voto concedido ao atual presidente da República. Tendo encontrado à resposta, pelo menos para mim, os sintomas da patologia não diminuíram. Eu continuava e ainda permaneço doente de Brasil.
Confesso, foram e continuam sendo incontáveis às noites que me vejo tentando entender como um verdadeiro gestor da morte chegou à Presidência da República. Como pessoas tiveram coragem para apertar o número 17 nas urnas? Alguns podem voltar ao parágrafo anterior e se perguntarem; E o embrutecimento social? Não sei, mas se continuo pensando, se ainda não consigo dormir, um dos motivos é que a tese do embrutecimento social é incapaz de abranger todas as minhas dúvidas. Embora, vou ser honesto, acredito que sempre tive muito mais indignação do que propriamente dúvida.
Como as noites sem dormir frequentemente me acompanham, tenho uma certeza, a doença ainda me acomete. Posso constatar essa afirmação pelo desinteresse crescente de estabelecer relações com pessoas que votaram em Bolsonaro. Ao ler algumas das pesquisas da professora Rosana Pinheiro Machado, assim como da Professora Ester Solano, estudiosas do “bolsonarismo”, tenho a nítida noção de que o meu distanciamento não contribui em nada para a reversão do embrutecimento consolidado no país.
Diante da confissão, peço desculpas a todos e todas, principalmente para quem está na linha de frente dialogando com os eleitores e eleitoras de Bolsonaro, procurando compreendê-los, ou melhor, entender as razões do voto na expectativa de demovê-los da barbárie e trazê-los para a civilização. Foram inúmeras as tentativas de diálogo. Assumo a responsabilidade do fracasso, me tornei, sem perceber, antipático aos eleitos do “mito”. Porém, aos que dialogam, além do respeito e da esperança de reverter o cenário de caos, peço novamente desculpas, tendo a certeza que entenderão. Quando se está doente, e eu estou doente, doente de Brasil, não é possível exigir e tampouco esperar comportamentos normais.
Adoraria dizer; eu estou bem, o Brasil está bem, mas a realidade é cruel, a realidade cotidiana desnuda na nossa frente. Eu não estou nada bem, o país está doente e adoecendo um número cada vez maior de indivíduos. Para piorar, centenas e mais centenas de pessoas, com inúmeros sonhos, desejos, angústias, frustações, enfim, pessoas, seres humanos, estão morrendo todos os dias. No boletim médico, além das crises respiratórias, a principal causa das mortes está relacionada à pandemia do Coronavírus. Infelizmente, diante do desejo de morte por parte do presidente da República, o Brasil está se tornando o epicentro da pandemia no mundo. Por favor, me ajudem a entender, por que pessoas apertaram o número 17 nas urnas? Como essas pessoas conseguem dormir sabendo que nós não conseguimos?
Nos últimos dias, quando a insônia incomoda cada vez menos, tenho associado como causa da morte dos milhares e milhares de brasileiros, além da covid-19, outro fenômeno tipicamente nacional, a saber, as pessoas estão morrendo de Brasil. Isso mesmo, o Brasil está matando cada vez mais, matando de forma impiedosa. Não sou médico, mas consigo fazer autodiagnóstico social, a patologia identificada como doentes de Brasil avança mais um degrau. O país com condições de adoecer também está matando. Hoje temos os mortos de Brasil.
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