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Não seja medíocre



O termo medíocre ou o seu derivativo semântico mediocridade é comumente associado a uma perspectiva jocosa e pejorativa. Não seria absurdo supor que a maioria das pessoas que se utilizam do conceito o fazem sem conhecer seu verdadeiro significado. Em boa medida, quando alguém diz que outrem é medíocre ou que algo ou alguma coisa é medíocre, está evocando uma interpretação assentada na irredutibilidade. Isto é, na intenção de promover uma adjetivação verbal grosseira, resultando na contingência da incapacidade (individual ou coletiva), da invalidez (voluntária ou intencional), ou mesmo no âmbito do insulto, seja ele do ponto de vista moral e/ou comportamental.


Embora a percepção geral acerca do que seja a mediocridade esteja vinculada a um consenso de depreciação, quer do indivíduo ou da coisa em si, o seu genuíno significado tem por essência uma definição um pouco mais abrangente, tendo por sustentáculo uma cosmovisão um pouco mais otimista. Nesse sentido, pretendo, neste texto, promover uma reflexão sobre o entendimento geral do que é “ser medíocre” no imaginário popular, ao passo que também procuro esclarecer o significado original do termo/conceito em si, e, por fim, tentar expor algumas ideias sugestivas para escapar da mediocridade (se é que isso seja possível).


Gosto sempre de lembrar que toda obra, seja um texto, uma pintura, uma composição, uma escultura, etc., não é tão somente produto exclusivo do próprio autor. Como bem disse uma vez Michel Foucault, toda obra pertence ao um contexto histórico-social específico, sendo portanto, uma construção coletiva. Desse modo, a motivação que induziu a confecção desse texto veio através de experiência cotidiana e, mais ainda, experiência cotidiana com algumas pessoas, e, pessoas, podemos dizer assim, medíocres.


A origem do termo medíocre vem do latim mediocris e tem por constituição a ligação semântica de dois adjetivos: medius (que ou quem está no meio, centro, médio), e ocris (penhasco, montanha). Desse modo, juntos os adjetivos, temos por definição original que medíocre e mediocridade significam todo aquele (ou aquilo) que é médio, mediano, que se encontra no meio, no centro, que não está nem muito acima e nem muito em baixo. Se observarmos bem, o sentido original do termo difere bastante do que geralmente se emprega cotidianamente.


Como já descrito no primeiro parágrafo, o termo é vulgarizado como algo jocoso, pejorativo, irredutível. Essa percepção não é de todo equivocada, mas também não está devidamente correta. Isso porque ela parte do princípio básico, mas não único, da negação da possibilidade. Explico melhor. Quando dizemos que alguém é medíocre, ou que algo ou alguma coisa é medíocre, estamos negando o fato de que seja possível a alguém ou a alguma coisa sair daquele estado de mediocridade. Mas essa negação não é intencional. Ela está contida na própria essência do termo.


A mediocridade não é apenas uma ação imputada tão somente a nós, mas sim, por nós. Podemos dizer que uma pessoa é medíocre pela forma que se comunica, pelas ideias e pensamentos que acredita, pelo tipo de comportamento, pela moral que adota. Mas, também, podemos associar o estado de mediocridade a objetos e coisas: essa casa é medíocre, esse carro é medíocre, esse computador é medíocre. A questão é que a mediocridade é, por natureza, um juízo de valor apenas imputado por nós. Ora, quando dissemos que aquela casa ou aquele carro é medíocre, estamos incidindo sobre aquele objeto um juízo de valor próprio, que pode ou não ser real. Esse juízo de valor pode estar, no caso de coisas e objetos, ao simples fato de eu não gostar da cor daquela casa, do modelo daquele carro, das funcionalidade daquele computador. Da mesma forma, quando induzimos a mediocridade no outro, estamos nós mesmos, construindo uma teia de valoração. Explico. A mediocridade não é um ato passivo, mas sim ativo. Constitui-se de um valor que elaboramos em nós mas que não vemos (ou não queremos ver) nos outros. Nesse sentido, só existe a mediocridade se existir no outro aquilo que condenamos veementemente.


Esse vetor ativo não condiciona a mediocridade a uma causalidade sem efeito. Dito de outro modo, ser medíocre não é da ordem natural das relações humanas. Ser medíocre é questão de opção, escolha. É claro que essa escolha também não é natural ao ponto de conhecermos profundamente quais as ações, as atitudes e os comportamentos que constituem a mediocridade. Embora saibamos que com o tempo e a experiência, que certos comportamentos e hábitos recorrentes são postos, pela maioria, no limbo da irredutibilidade, logo, no campo da mediocridade, não temos clarividência de todas as suas características.


O que quero verdadeiramente dizer é que uma pessoa aprende com o tempo que certas atitudes são prejudiciais ao bom convívio em sociedade. A mediocridade é tema amplamente presente nas sociedades antigas. Os gregos se dedicavam a uma vida extremamente voltada para a cidade-estado (a pólis). As questões mais importantes, como a política, a economia, a guerra, eram tratadas de forma prioritária, sendo considerado o indivíduo que não se atentava para tais questões um idiotes (termo grego que traduzido para o português significa “idiota”). Idiota, nos tempos da Grécia Antiga, era o indivíduo que não se interessava por temas relevantes, que abdicava de participar da vida pública, sujeito que nada enxerga além dele mesmo e que julga tudo e todos imbuído de sua pequenez.


Certos comportamentos, certos dizeres e certos pensamentos acabam por constitui valores rejeitados. E essa rejeição se torna um hábito. Se tornando um hábito, se torna crônica. Esse é outro fator importante a se considerar em relação à mediocridade. Ela pode vir a se tornar crônica, ou seja, corriqueira. E talvez aqui a definição original seja mais adequada. Isso porque ela nos diz que ser mediano, estar no meio, no centro, significa apatia, inércia, imutabilidade. Uma pessoa medíocre dificilmente procura agir para mudar determinada situação ou estado de coisa. É sujeito dominado pela apatia. É sujeito acomodado, vive na zona de conforto. É pessoa diagnosticada com a “Síndrome de Gabriela” (eu nasci assim, vou viver assim e vou morrer assim).


Há uma linha muito tênue entre a mediocridade e o fracasso. Via de regra, pessoas medíocres são pessoas fracassadas. Fracassadas no trabalho. Fracassadas na escola. Fracassadas no casamento. Fracassadas no namoro. Fracassadas na família. O fracasso é confortável, como já disse uma vez numa palestra o professor Leandro Karnal. Ele é aquilo que me torna indiferente ao mundo e às pessoas. Que nega o meu papel como sujeito principal de minha história. Que subtrai totalmente a responsabilidade sobre mim mesmo: não dei certo, fui à falência, adquiri um vício, eu bebo até cair. Nessa abordagem, o fracasso como uma atenuante da mediocridade, é inerente ao desejo de ação, pois é condição e produto de uma escolha. Ninguém nasce fracassado. Você se torna um fracassado. Ninguém nasce medíocre. Você se torna um medíocre.


A mediocridade também está relacionada à inveja, à detração e ao ódio. Pessoas medíocres são pessoas invejosas, uma vez que não suportam o sucesso dos outros porque são fracassadas. Pessoas medíocres são pessoas fofoqueiras, que difundem intrigas, porque não suportam a felicidade dos outros. Pessoas medíocres são pessoas que odeiam, porque querem eliminar o outro. O medíocre geralmente ataca aquele que está acima dele ou abaixo dele, já que ele (o medíocre) é mediano. Ataca justamente porque não pode ser nenhum e nem o outro. Porque sua condição permanece imutável. Ataca porque raramente pensa. Ataca sempre a pessoa, não suas ideias. É um covarde.


Até aqui chegamos a algumas conclusões importantes, mas que não encerram a discussão. Desse modo, ser medíocre é questão de tomada de decisão e não fruto do acaso. Ser medíocre é condição de negação do mundo e de mim mesmo. Um sujeito medíocre é um sujeito que vive no conforto do fracasso. Mediocridade comporta inveja, ódio e detração.


Nesse sentido, devemos questionar: Podemos escapar da mediocridade? A mediocridade é influenciável? Ser medíocre me condiciona ao afastamento de pessoas?

Eu diria sim, para as três questões.


Se a mediocridade é imputada por meio da experiência cotidiana e das relações humanas, do mesmo modo que ela é “aprendida”, ela pode ser “desaprendida”. Nesse ponto, podemos escapar da mediocridade. Isso porque ela não é total, muito menos cerceadora da possibilidade de mudança, basta boa dose de esforço e autoconsciência. É difícil para um medíocre reconhecer que é um medíocre, porque estaria condenando a si mesmo em face de um valor socialmente rejeitado. Mas reconhecer sua condição de mediocridade é o primeiro passo para deixá-la.


A mediocridade é sim influenciável. E não só do ponto de vista de gestos, comportamentos e ideias. Mas também no âmbito das coisas. Ela é influenciável porque se transmite em meio a uma rede de símbolos atrelados a padrões tidos como socialmente aceitos, bem vistos no tecido social, mas que o degeneram. Exemplo claro: pessoas que agem conforme procuram agradar a outrem, negando sua própria essência, seus próprios ideais e suas próprias convicções. Neste ponto, o medíocre é também um hipócrita.


Gosto muito de uma frase do escritor e filósofo italiano Umberto Eco, que diz assim: “as redes sociais deram voz aos idiotas”. Essa reflexão é muito pertinente para o que estamos discutindo aqui. Os “idiotas”, que antes podiam ser facilmente “derrotados” no plano da argumentação, agora proliferam-se nas redes sociais e destilam seu ódio e seu autoritarismo por lá. É um campo fértil para pessoas medíocres. A mediocridade tem na difusa rede social seu mais eficaz meio de reprodução. O medíocre é um covarde que desprovido de argumentos e ideias plausíveis, se esconde atrás de um perfil nas redes sociais para espalhar sua mediocridade. Ódio, autoritarismo, inveja, fofoca, intrigas, controle, assédio, vigilância. Tudo isso potencializado pela Web. Hoje, vivemos em um mundo em que as redes sociais promoveram e atomizaram a mediocridade. Por vezes, uma desintoxicação é a melhor saída para escapar do mundo difuso da mediocridade amplamente disseminada pela Internet.


Ser medíocre me afasta, mesmo que muito lentamente, do convívio de pessoas. A justificativa está assentada no fato de que o medíocre, com o tempo, se torna indesejável. É um inconveniente. No grupo que pertence, na comunidade em que vive, é sempre tido como um desajustado, um desequilíbrio da boa convivência. Em outras palavras, é um chato.


Mas como saber se sou uma pessoa medíocre? Fácil. Existem sinais. E estes sinais são, via de regra, padronizados. Se você percebe que certas pessoas se distanciaram, pessoas que antes eram próximas, há aí um primeiro sinal. E esse distanciamento geralmente não é justificado, porque há uma enorme dificuldade das pessoas de se justificarem, sobre qualquer coisa. Está aí o segundo sinal. E o terceiro sinal talvez seja o mais sintomático. É quando você percebe que suas ações causaram danos, prejudicaram outras pessoas e por essa razão essas mesmas pessoas se afastaram. Talvez aí seja tarde demais. A reparação da mediocridade é um desafio enorme.


Sou um admirador do pensamento de Nietzsche. Dele, podemos extrair algumas lições importantes para nossa discussão. Apesar de não abordar diretamente, o filósofo alemão do século XIX evoca uma reflexão que desponta para um questionamento da mediocridade, por meio do que se convencionou chamar de niilismo. O niilismo é uma doutrina filosófica que prescreve o nada, o vazio existencial e o fim último das coisas. Em suma, o niilismo pressupõe que tudo vai acabar um dia, que nascemos, vivemos e morremos para o nada. É a morte do sentido. É claro que quando critica o niilismo Nietzsche está combatendo a moral cristã e os valores assentados no platonismo, num valor metafísico, transcendente. Nesse sentido, todo medíocre é um niilista. É um niilista porque para ele não há sentido na experiência, no viver e no morrer. Em outras palavras, o medíocre é um egoísta, egocêntrico, que não vê nada além de si mesmo.


O professor Mário Sérgio Cortella tem uma reflexão que também é pertinente acerca do tema que estamos desenvolvendo. Ele diz que geralmente, toda pessoa medíocre acredita que já nasce predestinada, com um “dom” específico, com uma missão e uma tarefa a ser cumprida. Ou seja, todo medíocre defende a ideia de predestinação. Ao contrário disso, o medíocre tem verdadeiro ranço à ideia de que não nascemos prontos; que ao longo de nossa existência vamos nos fazendo, nos esculpindo, nos construindo e desconstruindo, continuamente. O medíocre é uma pessoa absoluta.


Por fim, acredito que devemos buscar constantemente nos afastarmos da mediocridade. Ela nos cega e nos destitui de nossa essencialidade. Perdemos nossa capacidade de ser, antes de existir, como já dizia Sartre.


Aquele velho clichê de que “amor próprio é tudo” vale nessa hora. E amor próprio aqui não significa isolar-se e voltar-se para si mesmo em condição de um egoísmo autoritário. Ao contrário, significa não se apequenar em face de pessoas que não valem o seu tempo e a sua energia. Significa, sobretudo, impor a si mesmo prioridades.


Reconstitua-se. Faça um bolo. Exercite-se. Procure boas conversas. Estabeleça relações saudáveis. Beba água.

Não seja medíocre.

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