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O conforto dos neoliberais no governo Bolsonaro



No Brasil, os partidos de esquerda e de centro-esquerda se encontram em uma situação embaraçosa. Os desafios são muitos, as perspectivas estão distantes de serem animadoras e, até o presente momento, esse segmento partidário tem encontrado dificuldades para compreender o modo de ação do governo atual[1]. Modo de ação que se encontra representado por meio do fundamentalismo neoliberal e do neofascismo de caráter popular.


Associar neoliberalismo com regimes totalitários está muito distante de ser uma tese que não se sustenta, pelo contrário, historicamente os neoliberais estabeleceram uma relação muito estreita com os regimes totalitários, tanto na Europa quanto na América Latina. A relação é longeva, tem início na década de 1940 como bem observa Leonardo Avritzer no importante artigo intitulado Bolsonarismo e liberalismo, publicado no site A terra é redonda. Entende-se, a partir da reflexão do cientista político, que o estreitamento de laços entre o (neo)liberalismo e o totalitarismo deve ser analisado por meio da ideia da longa duração, isto é, distante de ser um fenômeno do tempo presente e tampouco circunscrito ao passado histórico.


No entanto, apesar da relação estreita entre neoliberalismo e totalitarismo, evidente desde o advento desse projeto econômico, muitos neoliberais procuram justificar o apoio ao projeto de destruição do governo Bolsonaro se colocando como defensores das ações de Paulo Guedes, Ministro da Economia, e não necessariamente da política de Bolsonaro em si. A partir dessa perspectiva, Guedes, na ótica neoliberal, representaria uma forma de governo totalmente distinta daquela representada pelo atual presidente da República. Essa tese, evidentemente não se sustenta, seja observada historicamente, ou circunscrita somente a figura de Paulo Gudes. Vamos aos fatos.


Como é de conhecimento público, Guedes estabeleceu uma relação muito estreita com a ditadura chilena comandada por Augusto Pinochet. Na década de 1980, a convite de Jorge Selume Zaror, Guedes desembarcou no Chile para atuar como acadêmico e pesquisador da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile. Na Universidade, Paulo Guedes teve oportunidade de acompanhar in loco a atuação dos Chicago boys[2], que, entre outras medidas, conseguiam implementar diferentes reformas neoliberais dentro da Ditadura. A partir disso, dos trabalhos prestados dentro do Chile massacrado por Pinochet, é possível compreender que a relação entre o neoliberal Paulo Guedes e os governos autoritários não é recente, pelo contrário, se constitui como fato de longa duração, tendo o seu início na década de 1970 dentro da Universidade de Chicago, passando pelo governo Pinochet, e desembocando com toda intensidade no governo atual.


Ao acompanhar a trajetória profissional do atual ministro da economia, mesmo se desconsiderarmos os laços estreitos e históricos do neoliberalismo com os regimes totalitários, tendência insistente na manifestação dos neoliberais brasileiros, torna-se possível perceber que a narrativa neoliberal procurando desassociar Guedes da política autoritária não se sustenta. Afinal, Paulo Guedes estabeleceu relação estreita com uma das ditaduras mais violentas da América Latina. A partir dessa trajetória profissional não surpreende o fato de ter aceitado o convite para trabalhar, justamente, no governo de Jair Bolsonaro. Como é de conhecimento público, o atual presidente da República, em muitas oportunidades, declarou ser um admirador do falecido ditador chileno.


Apesar dessa relação histórica envolvendo neoliberalismo e governos totalitários, muito presente no Brasil atual, parte considerável da esquerda parece querer não compreender como atua o modus operandi do governo Bolsonaro, quando o embarque de muitas lideranças, intelectuais e partidárias, na famigerada “frente ampla” demonstra, no mínimo, incapacidade de compreensão. Alguns têm afirmando que o aceite para embarcar na “frente ampla” pode ser explicada pelo desespero que assombra todos nós. O modo de atuação do governo Bolsonaro é, também, o modo de atuação do neoliberalismo, exemplificado na figura de Paulo Guedes, neoliberal e próximo historicamente dos governos autoritários.


Por exemplo, importantes nomes da esquerda partidária têm insistindo na tese do distanciamento entre o fenômeno social/político do fenômeno econômico, defendendo a importância do diálogo com os neoliberais. A ideia do diálogo me parece, mais uma vez, acreditar no poder da política da conciliação. Lembrando que a política da conciliação foi o fenômeno que norteou toda Terceira República, tendo chegado ao fim com o golpe jurídico/parlamentar de 2016. A partir desse acontecimento histórico não é mais possível falar em Terceira República, e tampouco conciliação com quem rompeu o frágil contrato social.


É nítido que o contexto não demanda conciliação, pelo simples fato de o grupo dirigente se recusar a encarar com seriedade essa hipótese. A elite brasileira teve a oportunidade de se reconciliar com as camadas populares e progressistas em 2018, no entanto, sem muita cerimônia, seguiu o modo de atuação histórico, isto é, relação estreita com os governos autoritários. Os neoliberais se sentiram confortavelmente representados, encontrando na figura de Bolsonaro a liderança de extrema-direita que, entre outros fatores, aguça toda a pauta dos costumes enquanto os neoliberais, Rodrigo Maia e Paulo Guedes, destroem rapidamente o estado brasileiro. De reforma em reforma o Brasil vai sendo destruído, entregue aos interesses do mercado financeiro.


Enquanto isso, alguns setores da esquerda não estão conseguindo construir uma oposição sistemática ao projeto econômico/social de Bolsonaro/Guedes/Maia. A oposição se efetivará na medida em que recusar qualquer tipo de diálogo e, além disso, conseguir demonstrar o quanto esse modelo econômico/social é destrutivo, não somente para alguns, mas para todos. A destruição envolve os direitos conquistados e as liberdades individuais/coletivas em construção, empobrecendo a maioria enquanto enriquece poucos.


O apoio popular de Bolsonaro encontra-se enraizado na parcela mais conservadora da sociedade, precipuamente nos fundamentalistas religiosos. No entanto, esse segmento, constituído na sua grande maioria de pessoas pobres, vem sendo cotidianamente atingido pelas reformas neoliberais do governo. Para a esquerda, conseguir apresentar esse cenário de destruição, além do nicho, é fundamental, caso contrário, dificilmente o governo da morte perderá apoio popular. Enquanto Bolsonaro investe na pauta moral/conservadora, a vida de todos, inclusive dos conservadores, vai sendo rapidamente destruída pelas reformas neoliberais.


Essa afirmação não significa dizer que o entrelaçamento entre neoliberais e Bolsonaro tenha sido uma condição ocasional, atendendo, por exemplo, aos interesses de ambos. Não existe ambos nessa situação. O neoliberalismo, historicamente, se comportou do mesmo modo que estamos vendo no Brasil, aproveitando-se do autoritarismo para impor as reformas de destruição social. Guedes, mais uma vez, aparece como exemplo elementar, trazendo às experiências implementadas pelos Chicago boys na Ditadura de Pinochet para o governo autoritário de Bolsonaro.


No Brasil contemporâneo, como bem observa Marilena Chauí (2019), o estado foi sequestrado pelo neoliberalismo. A partir dessa observação, talvez nada seja mais utópico do que acreditar na possibilidade de construir um estado democrático de direito pela via neoliberal, afinal, o neoliberalismo se caracteriza pela destruição de direitos, e não pela manutenção. Lembro- me de Herbert Marcuse, importante filósofo da Escola de Frankfurt, quando afirmou ser praticamente impossível lutar contra o nazismo sem lutar contra o capitalismo. Sílvio Luís de Almeida, de forma parecida, em entrevista recente ao jornalista Felipe Betim, El País, afirmou que não há condições da pessoa ser antirracista e continuar defendendo as reformas neoliberais.


Na esteira desses dois importantes intelectuais, cada um inserido em determinado recorte histórico, acredito que não existe a mínima condição do indivíduo ser oposição ao governo Bolsonaro se não for, antes de tudo, oposição ao neoliberalismo. O governo Bolsonaro é nitidamente um governo neoliberal, e os neoliberais entendem essa relação envolvendo fundamentalismo de mercado e governo autoritário perfeitamente. Essa relação, na ótica neoliberal, está distante de ser novidade, distante de ser uma invenção típica do tempo presente.


Entretanto, o que deveria ser obvio, nesse momento, parece ser muito complexo para segmentos importantes da esquerda partidária.





Notas:


[1] É evidente que algumas lideranças partidárias e populares da esquerda estão conseguindo fazer uma leitura importante do cenário, adotando posicionamento de enfrentamento sistemático ao governo atual. Entre essas lideranças, aquela que parece melhor compreender a atual conjuntura está o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entre outros posicionamentos, Lula recusou assinar o famigerado documento da “frente ampla”. A recusa foi duramente criticada por diferentes segmentos da esquerda partidária. Porém, depois de alguns meses, fica evidente que o objetivo da “frente ampla” não buscava retirar do poder o governo da destruição, mas fazer com que Bolsonaro ficasse mais comedido em suas manifestações. Objetivo foi alcançado, mas não necessariamente pela atuação da “frente ampla”, devendo-se muito mais em decorrência da relação próxima de Bolsonaro com o famigerado Centrão. [2] O termo Chicago boys faz alusão aos jovens economistas que foram formados na Universidade de Chicago (EUA) na década de 1970. Esses jovens economistas, entre eles Paulo Gudes, tiveram em Milton Friedman a principal referência intelectual. Friedman é considerado o grande responsável por ter convencido Pinochet a adotar o neoliberalismo dentro do regime ditatorial chileno. Além disso, é considerado um dos principais teóricos do modelo neoliberal.



Referências:

AVRITZER, Leonardo. Bolsonarismo e liberalismo. A Terra é Redonda, 30 ago. 2020. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/bolsonarismo-e-liberalismo/ (acesso em 02/10/2020).

BETIM, Felipe Betim. Entrevista com Sílvio Almeida. Sílvio Almeida: “Quem quer civilizar o Brasil não pode temer o poder. Temos de nos livrar dessa alma de senhor de escravo”. El País, 23 ago. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-23/silvio-almeida-quem-quer-civilizar-o-brasil-nao-pode-temer-o-poder-temos-de-nos-livrar-dessa-alma-de-senhor-de-escravo.html (acesso em 03/10/2020).

CARNEIRO, Júlia Dias. As homenagens de Bolsonaro a Pinochet e por que o general ainda divide o Chile. BBC News Brasil, 22 mar. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47674503 (aceso em 04/10/2020).

CHAUÍ, Marielna. Neoliberalismo: a nova forma de totalitarismo. A terra é redonda, 06 out. 2019. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/neoliberalismo-a-nova-forma-do-totalitarismo (acesso em 04/10/2020).

MIGUEL, Luis Felipe. Um defunto sem vela. A terra é redonda, 02 out. 2020. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/um-defunto-sem-vela/ (acesso em 02/10/2020).

MONTES, Rocio. O laço de Paulo Guedes com os ‘Chicago boys’ do Chile de Pinochet. El País, 31 ago. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/30/politica (acesso em 02/10/2020).

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