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O embrutecimento do país é explicado pelo sonho



Nos últimos anos, não somente o Brasil, mas o chamado mundo ocidental tem se deparado com fenômenos, não inéditos, mas no qual a maioria da população acreditava não mais vivenciar. Não se trata de uma perspectiva cíclica, porém, de fenômenos que reaparecem com uma força avassaladora, parecido com fenômenos do passado, mas sem sê-los.


Por exemplo, quem, em sã consciência, imaginaria que estaríamos vivenciando um período tão opressor como nos dias atuais? É provável que somente os mais realistas, distante de serem pessimistas, tiveram a perspicácia de compreender que uma onda conservadora estava surgindo das imundices de um passado escondido, porém disposto a aparecer logo na primeira oportunidade.


Como realistas, suas falas, admoestações e outras leituras foram silenciadas pelo entusiasmo do imaginário que acometeu a sociedade brasileira por mais de uma década. Parte da população foi embevecida pelo imaginário, acreditando, planejando, idealizando e sonhando com um mundo que, indubitavelmente, teria menos marcas de sofrimento. O embevecimento atingiu todas as classes sociais, comovendo e mobilizando o grupo dos menos favorecidos, que passaram a acreditar que outro mundo seria possível. Esse outro mundo não estava no presente, mas no futuro.


Um futuro que não seria somente de sonhos, mas de concretização dos desejos. Quem teve a mínima oportunidade de sonhar foi o pobre, representado pela classe trabalhadora. O sonho do pobre, das minorias, não é colossal, é realista, materializado pelo desejo de viver com o mínimo de dignidade, e esse mínimo pode ser entendido como não passar frio, fazer alimentação diária, ter um teto para dormir, uma terra para plantar e colher, ter direito de trabalhar, estudar, se divertir, de amar, entre outros direitos básicos assegurados pela Constituição de 1988. Ou seja, não é utopia, é sonho. O sonho idealizado no tempo presente caminhava para se concretizado no futuro próximo, pelo menos no imaginário do indivíduo que nunca teve, se quer, o direito de sonhar.


No entanto, àqueles que sempre tiveram o direito de dormir, representado por setores da classe média e da elite dominante, ao verem que outros indivíduos, historicamente, sem direito de ser quer dormir, também estavam sonhando, se indignaram, e da indignação começaram a construir uma reviravolta no imaginário, não mais em direção ao futuro, sem transformação, mas caminhando de volta para o passado. O futuro, para o seguimento dominante, passou a ser incerto com tanta gente sonhando, e a única certeza passou a estar ancorada no passado, quando o frio, a fome, e a miséria impediam as pessoas de dormir, e sem dormir ninguém sonha.


Por não ter adquirido a consciência sobre a importância do coletivo, da construção de um mundo mais humano e fraterno, a classe dominante que, ao longo do processo histórico, sonhou solitariamente se tornou suscetível e reativa a qualquer transformação que ameaçasse o seu futuro, esse, dominado pelos privilégios. Nesse caso, o futuro sempre estivera ancorado, somente, no direito dela de sonhar, sonhar e usufruir. Essa classe, quando olhou para o lado e percebeu que àqueles que trabalhavam para ela sonhar também estavam sonhado se sentiu indignada, e da indignação passou ao desespero.


Diante da decepção, oriunda da inviabilidade de sonhar um futuro dominado por ela, a classe dominante inverteu a direção do sonho, não mais com o porvir, porém com aquilo que mais parecesse com o que já tinha sido. Com esse intuito, se agarrou ao imaginário do passado, menosprezando o presente, como se o tempo que vivessem não existisse mais, ou melhor, fosse apenas um passaporte às avessas. Diante do desespero com a possibilidade de ter que assegurar direitos para quem nunca os teve, consideraram e fizeram de tudo para silenciar o tempo no qual foi possível aos oprimidos sonharem.


Nesse sentido, o mundo imaginado por aqueles que veem no passado a solução para os seus imagéticos problemas não é nada atrativo, pelo contrário, é o que há de mais terrível para uma sociedade consumir, onde e quando torturadores assumem o patamar de heróis, e as vítimas dos torturadores são condenadas como se fossem algozes. O que resta de tudo isso? Difícil de dizer, mas talvez o que nos resta para agarrar seja, somente, a desesperança. Mas por que devemos nos agarrar a desesperança? Justamente porque foi à esperança, egoísta, que nos levou novamente ao caos.


Desesperança é o que move as crianças, como defende Eliane Brum em seu mais recente artigo publicado no El País. E se é a desesperança o que move as crianças, sempre compreensivas e companheiras uma com as outras, é com elas que eu quero estar. Talvez esteja no momento de construirmos, novamente, um outro sonho, e esse outro sonho passa pelo fato de darmos as mãos, não com aqueles que sonham hoje com o passado, mas nos agarrarmos aos pobres, aos oprimidos, as vítimas do sistema que, nesse momento, estão impedidos de sonhar.


Sonhar não pode ser privilégio, deve ser um direito de todas e todos.

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