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O neoliberalismo está nu


Na última semana o filósofo Vladimir Safatle publicou um artigo no El Páis, A Única saída é o Impeachment, defendendo a importância do afastamento do presidente Jair Bolsonaro como uma das maneiras de superar a crise sanitária, humanitária e civilizacional que assola o país. Apesar de não concordar com a tese central do artigo, defesa do impeachment, por motivos já explicitados em outros textos publicados nesse espaço, especialmente um, Bolsonaro e a verdadeira Ditadura, uma assertiva do filósofo tem me inquietado desde o dia que fiz a leitura do artigo, a saber: “Neoliberais não choram, eles fazem conta”. Essa afirmação é tão verdadeira que é, ao mesmo tempo, desconcertante.


Quando a pandemia adentrou efetivamente no país uma das primeiras atitudes do Ministro da Economia, o senhor Paulo Guedes, foi enviar ofício aos presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, pedindo para os presidentes ajudarem na aprovação das propostas que seriam enviadas pelo governo no intuito, segundo o ministro, de blindar a economia do país diante da crise econômica provocada pelo coronavírus e, não menos importante, [grifo nosso] pelo neoliberalismo. Entre as propostas que seriam enviadas o ministro pretendia inserir as seguintes reformas; Reforma Tributária e Reforma Administrativa, assim como outras medidas similares, tais como a possibilidade de redução de salário dos servidores públicos diante de um cenário de crise fiscal.


Quando os neoliberais falam em viabilizar a economia, o resultado prático é, como temos percebido desde 2016, favorecer e intensificar o lucro do mercado financeiro, especialmente dos bancos e dos representantes do agronegócio. O mencionado ofício de Paulo Guedes foi enviado no dia 10 de março. Nesse contexto a epidemia já havia ampliado seu poder de circulação além da Ásia, tendo se alastrado em outros espaços, principalmente pela Europa, intensificando o processo de dizimação do que hoje se tornou milhares de vida.


Por exemplo, no dia 09 de março, um dia antes do envio do ofício, somente os casos suspeitos de Coronavírus no Brasil haviam subido 40% se comparado com o dia 08 de março, totalizando 930 casos suspeitos em plena segunda-feira. No dia 12 de março o Brasil já contabilizava 77 pessoas infectadas pelo Coronavírus. Nesse intervalo de três dias, quanto todas as estatísticas demonstravam que o Covid-19 estava chegando de forma intensa no país, o senhor Paulo Guedes estava preocupado em aprovar às reformas e Projetos de Emenda à Constituição que beneficiariam o mercado financeiro.

Aliás, se tem um setor que de forma alguma pode reclamar do governo Bolsonaro/Paulo Guedes, esse setor é o mercado financeiro. Apesar da vida da maioria da população ter se tornado cada vez mais difícil desde que o governo Temer, abril de 2016, sequestrou o poder, o mercado financeiro não tem do que reclamar, pelo contrário, desde então, seu “nervosismo” tem diminuído consideravelmente. Embora seja importante ressaltar que o mercado financeiro, mesmo diante de um governo mais progressista, como fora os governos do PT, nunca deixou de lucrar no país. No entanto, o lucro associado com a mínima distribuição de renda não interessa a esse segmento.


Quando se observa o aumento exponencial dos lucros obtidos pelos bancos, desde o período Temer até os dias atuais, fica mais fácil compreender os motivos pelo qual o mercado financeiro apoiou o golpe parlamentar de 2016, defendeu de maneira assídua todas às reformas que retiraram diretos da classe trabalhadora, assim como abraçou incondicionalmente o autoritarismo de extrema direita de Jair Bolsonaro. Para o neoliberalismo independe qual regime esteja em vigência no país, seja de sentido democrático, autoritário, fascista, ou de qualquer outra natureza, o importante mesmo não é somente garantir os lucros, mas elevá-los ao máximo.


No dia 07 de novembro de 2019 o portal UOL trazia a seguinte manchete: “Lucro dos 4 maiores bancos cresce 15%, soma R$ 59,7 bilhões no ano e é recorde. Enquanto a maioria da população teve que conviver com a perversa Reforma da Previdência conduzida por Bolsonaro/Guedes e Rodrigo Maia, vendida pelo mercado financeiro e seus representantes midiáticos como salvação econômica, os verdadeiros donos do poder constatavam o obvio, a saber, que a gestão Bolsonaro/Guedes não mediria esforços para satisfazê-los.


Diante da chegada da pandemia uma das primeiras preocupações do senhor Guedes, vide ofício enviado no dia 10 de março, foi de aprovar medidas para favorecer os já favorecidos do mercado financeiro. Se houvesse sensibilidade, ou melhor, se o governo Bolsonaro fosse voltado para atender às necessidades básicas da população, o ministro da Economia enviaria oficio para verificar a viabilidade da extinção da EC 95. Lembram dela? Então, a EC 95 foi uma das primeiras prestações de conta do governo Temer aos agentes que verdadeiramente o colocaram no poder, isso mesmo, Temer prestou contas ao mercado financeiro.


Aprovada em 2016, a Emenda Constitucional congelou o investimento do estado em áreas prioritárias, tais como saúde, por 20 anos. Somente no ano de 2019, em decorrência da EC 95, a pasta da saúde no Brasil perdeu investimento de 9,5 bilhões de reais. Com 9,5 bilhões seria possível construir inúmeros leitos hospitalares, comprar milhares e milhares de máscaras para ajudar na prevenção do Covid-19, contratar muitos médicos e médicas para ajudar no enfrentamento da doença, milhares de aparelhos para auxiliar na respiração dos pacientes com estado mais grave, entre inúmeros outros itens que, nesse momento, poderiam salvar inúmeras vidas. O dinheiro que poderia salvar vidas foi retirado para favorecer, ou melhor, destinado aos bancos para que esses pudessem bater recordes e mais recordes quando o assunto está voltado para mensurar os seus lucros.


Com a consolidação do Coronavírus no Brasil, desnudando os terraplanistas epedimiológicos que chegaram a afirmar que a pandemia seria uma “gripezinha”, além dos efeitos da doença, a maioria da população brasileira está preocupada, não necessariamente com a economia, mas com o que terá para comer no dia seguinte. Diante dessa situação, inúmeros países que são influenciados pelas políticas neoliberais tais como França, Inglaterra, Estados Unidos, têm sinalizado com propostas de projetos que venham socorrer as pessoas da miséria social, garantindo o mínimo necessário para que não venham a morrer, sem nenhum exagero, de fome. No entanto, o neoliberalismo à moda brasileira, comandado pelos senhores Bolsonaro e Paulo Guedes, demonstra ter pouco interesse pela vida humana, principalmente se essa vida for da população mais pobre.


É possível constatar a falta de preocupação de Bolsonaro e Guedes com a vida da população mais vulnerável por meio da Medida Provisória, MP 927, que fora publicada no último dia 23 de março. Entre os vários artigos da MP um chamou bastante atenção, mais especificamente o art.18. O artigo permitia que as empresas suspendessem o contrato de trabalho por até quatro meses sem salário para o trabalhador. Em tese, Bolsonaro pretendia deixar a classe trabalhadora à sua própria sorte. A estratégia utilizada pelo presidente e seu ministro foi a seguinte, lançar a Medida Provisória para verificar se a população se importaria com a morte dos mais vulneráveis, caso se importassem, como se importaram, gritando: “Olha, as pessoas mais vulneráveis vão morrer de fome”, o presidente revogaria o artigo, mas se não houvesse gritaria, se permanecesse o “cada um por si e Deus para poucos”, não resta dúvida que o artigo permaneceria e os grandes empresários poderiam passar, no mínimo, quatro meses sem se preocupar com um mísero centavo para os trabalhadores.


Depois de passar o período da manhã toda defendendo a Medida Provisória, no final da tarde, do mesmo dia, o presidente revogou o artigo mais desumano, embora a MP continue na ativa e seu caráter, como um todo, seja extremamente prejudicial à classe trabalhadora. Independentemente de revogar o artigo, o simbolismo da mensagem é muito nítida, Bolsonaro/Paulo Guedes, assim como a maioria dos neoliberais, não se importa com a vida da população, seus interesses estão centrados em aproveitar toda e qualquer oportunidade para manterem intactos os privilégios do mercado financeiro e dependendo da oportunidade ampliá-los. No contexto que requer empatia, presença do estado na vida das pessoas, Bolsonaro e Paulo Guedes demonstram o quanto cruel e desumano um ser humano pode ser.


No entanto, não são somente os representantes políticos do neoliberalismo que demonstram a desumanidade sem nenhuma veste. Neoliberais de diferentes setores, empresários/apresentadores, donos de restaurantes, de lojas varejistas, entre outros, demonstram não ter nenhum receio de afirmar que seis ou sete mil vidas não importam, principalmente se essas vidas forem de idosos pobres. É difícil falar que o Brasil se surpreendeu com as declarações do apresentador Roberto Justus, afinal, um país que elege Bolsonaro não deveria se surpreender com mais nada, mas ao tentar justificar o que chamou por histeria por causa de uma “gripezinha”, Justus demonstrou não se importar com a possibilidade da morte de 10 a 15% das pessoas idosas que possivelmente serão contaminadas. O apresentador afirmou: “Quem entende um pouco de estatística, que parece que não é o teu caso, (referia-se ao apresentador Marcos Mion), vai perceber que é irrisório. Dos que morrem, mesmo dos velhinhos, só 10 a 15% morrem”. Depois do Brasil e o mundo conseguirem superar os efeitos da pandemia, essa leitura de Roberto Justus deveria ser apresentada como indício de como parte da elite brasileira, principalmente os neoliberais/ultraconservadores, relativizou e não se importou com a morte da população.


Ao tentar se justificar, Justus afirmou ter preocupação com a economia. A fala do apresentador, diante da narrativa neoliberal não deveria surpreender, pelo contrário, deve ser encarada como leitura natural, embora Justus tenha cometido um erro crasso. Desde 2016 os neoliberais procuraram justificar todas as reformas prejudiciais para a maioria da população por meio do famigerado discurso da preocupação econômica. No entanto, diferentemente dos neoliberais de outrora, tais como a maioria dos analistas econômicos dos grandes meios de comunicação, Justus não conseguiu bater e esconder a mão, ficou perceptível para todos que para salvaguardar a economia, entenda, ampliação dos lucros do capital, as pessoas podem morrer à vontade.


Os neoliberais que apoiaram a EC 95, a Reforma Trabalhista, A Reforma Previdenciária, e aquelas que vão apoiar as reformas Tributária e Administrativa sabem que essas medidas já mataram e vão continuar matando muitas pessoas porque retiram direitos e dinheiro de setores essenciais para a manutenção da vida. Entretanto, diferentemente de Roberto Justus que ficou “nu”, batem e escondem a mão. Porém, a justificativa é sempre a mesma, procuram relativizar a destruição dos direitos e, consequentemente, da vida da maioria da população em prol da “recuperação/salvação” econômica.


Poderia, ainda, utilizar o exemplo do empresário Junior Durski, dono da rede de restaurantes Madero, que afirmou que a economia não pode parar mesmo que a doença cause “5 ou 7 mil mortes”. Poderia, também, me valer do proprietário da Havan, Luciano Hang, que ameaçou de forma sorrateira demitir 22 mil funcionários caso fosse obrigado a fechar a sua rede de lojas em virtude da determinação da Quarentena. Lembrando que a Quarentena, recomendada por especialistas como meio eficaz para diminuir a capacidade de circulação do vírus, tem sido adotada por países que conseguiram, apesar dos pesares, diminuir os efeitos drásticos da pandemia, quando o exemplo mais notório é o da China.


Enfim, poderia continuar, talvez analisando o discurso de Bolsonaro de ontem, mas acredito que os exemplos aqui listados são suficientes para os leitores e ledoras desse texto conseguirem ampliar as suas concepções acerca do quanto desumano, genocida e cruel é o neoliberalismo brasileiro. Mesmo diante da crise humanitária os neoliberais não perdem uma única oportunidade para colocar os seus interesses, seus desejos insanos por lucro e mais lucro, acima da vida das pessoas. Nesse momento, diante da constatação da desumanidade dos neoliberais, podemos voltar novamente à afirmação de Safatle. Parece que o filósofo sussurra em nossos ouvidos: “Os neoliberais não choram, eles fazem conta”.

Referências:


DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Dono do Madero se diz triste com repercussão negativa do Vídeo. Diário de Pernambuco, 24 de mar. 2020. Disponível em: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/brasil/2020/03/dono-do-madero-se-diz-triste-com-repercussao-negativa-de-video.html. (acesso: 24 mar. 2020).

LÍRIO, Sérgio. Roberto Justus, dono do Madero, véio da Havan: o bolsonarismo se debate. Carta Capital, 24 de mar. 2020. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/roberto-justus-dono-do-madero-veio-da-havan-o-bolsonavirus-se-debate/. (acesso: 24 mar. 2020).

MORETTI, Bruno. Efeitos da EC 95: uma perda bilionária para o SUS em 2019. Brasil Debate, 24 de set. 2018. Disponível em: http://brasildebate.com.br/efeitos-da-ec-95-uma-perda-bilionaria-para-o-sus-em-2019/. (acesso: 24 mar.2020).

OLIVEIRA, José João. Lucro dos 4 maiores bancos cresce 15%, soma R$ 59, 7 bi no ano e é recorde. UOL, 07 de nov. 2020. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/11/07/lucro-dos-4-maiores-bancos-sobe-103-no-3-trimestre-para-r-193-bilhoes.htm. (acesso: 24 mar. 2020).

REDAÇÃO. Roberto Justus discute com Mion sobre Coronavírus: “Gripezinha leve”. Istoé, 23 de março de 2020. Disponível em: https://istoe.com.br/roberto-justus-discute-com-mion-sobre-coronavirus-gripezinha-leve/. (acesso: 24 mar. 2020).

REUTERS. Bolsonaro revoga artigo que permitia suspensão do contrato de trabalho sem salário. UOL, 23 de mar. 2020. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/03/23/bolsonaro-revoga-artigo-que-permitia-suspensao-do-contrato-de-trabalho-sem-salario.htm

SAFATLE, Vladimir. A única saída é o Impeachment. El País. 20 de mar. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-03-20/a-unica-saida-e-o-impeachment.html. (acesso: 24 de mar. 2020).

SOUZA. André de. Casos suspeitos de Coronavírus no Brasil sobem 40% e chegam a 930, 25 foram confirmados. O Globo, 09 de mar. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/casos-suspeitos-de-coronavirus-no-brasil-sobem-40-chegam-930-25-foram-confirmados-1-2429479 (acesso: 24 mar. 2020).

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