
A eleição de Bolsonaro, figura historicamente irrelevante do congresso nacional, se observada possibilita importantes ensinamentos para o campo progressista. É evidente que se a narrativa continuar sendo de que o eleitorado de Bolsonaro é, como um todo, fascista, não caminharemos, porque essa cortina confortável impedirá de se deduzir alguns elementos fundamentais, talvez o mais significativo esteja na pergunta, por que milhões de pessoas abraçaram satisfatoriamente o sujeito que concretizará políticas públicas destrutivas? Ou, por que pessoas, aparentemente humanas, passaram a naturalizar o mal?
As perguntas, para muitos equivocados, aparentam ser sem sentido, porque estão sendo conduzidos a acreditarem que a eleição acabou. Afinal, tenho certeza que as pessoas que estão lendo esse texto já se depararam com falas, ou textos dizendo, mais ou menos assim: “Pare de ficar criticando, porque o homem nem começou a fazer seu trabalho”. Além disso, é possível identificar um discurso ganhando corpo que caminha em um sentido parecido: “Essa ideia de resistência já está enchendo (isso mesmo que você pensou) porque essas pessoas não resistiam ao período da corrupção”.
Enfim, dentro de um contexto da autoverdade, me valendo do conceito para eu apresentado por Eliane Brum, o autoengano é um conforto diante de tempos sombrios. Finge-se que está tudo bem, mesmo sabendo que não está. Porém, a esperança está justamente no submundo do inconsciente do sujeito, que pode ser resgatado, fazendo que o inconsciente se transforme, primeiro em consciência, depois para consciência crítica e ativa.
Voltando ao tema central do texto, a desumanização do ser humano, que elegeu Bolsonaro, aconteceu quando o campo progressista, que nunca teve o discurso, perdeu a oportunidade de fazer um contradiscurso, quando poderia ter demarcado posições importantes na luta contra a narrativa dominante.
Dentro do contexto da comunicação instantânea, dos memes e mensagens curtas, pouco importando se o conteúdo é falso ou verdadeiro, a construção do discurso hegemônico adquire, ainda, mais importância. Para o semiólogo Roland Barthes, a principal característica do poder, está na força da comunicação, ou seja, da linguagem, que traz uma característica fascista, quando o fascismo não está, para o pensador, no ato de impedir os outros de dizerem, mas de obriga-los à dizer.
A obrigação não resulta, necessariamente, em uma coação de violência física, mas na maioria das vezes atua no campo simbólico. Na situação brasileira existe inúmeros exemplos de violência simbólica, mas um aparenta ser mais significativo e possivelmente é o resultado do caos social, a saber, os grandes meios de comunicação, ou para ser mais preciso, os espaços de jornalismo desses meios.
Guardadas as raríssimas exceções, mas o discurso jornalístico dos grandes meios de comunicação no país não aceita o contraditório. Não é que o contraditório não exista, reiterando, ele não é aceito. Há milhares de espaços alternativos, dizendo o contraditório, mas com pouca capacidade de penetração, falando para eles, ou melhor, para nós mesmos. Uma das formas de ampliar a comunicação seria ocupar o espaço dos grandes meios, não necessariamente assumir o protagonismo, mas ter uma voz destoante da narrativa reproduzida em uníssono. Para a hipótese se concretizar uma questão é, ou melhor, seria essencial, a saber, termos meios de comunicação democráticos.
Se assim fosse, em todos os programas jornalísticos teríamos leituras divergentes para o telespectador “se apropriar”, “(re)apropriar”, ou produzir uma narrativa mais condizente com sua leitura de mundo. Porém, para evidenciar a divergência é, ou seria necessário, que os divergentes fossem convidados/as para participarem das rodas de conversa que pensam à economia, política, cultura, educação, desemprego, desigualdade, o repetitivo termo da corrupção, e tantos outros temas relevantes para a sociedade brasileira.
No entanto, ao invés do anseio idealizado acima, temos nos espaços jornalísticos os mesmos “especialistas” falando as mesmas coisas com palavras diferentes. Por exemplo, houve narrativa única no acesso de Temer ao poder, na prisão do ex-presidente Lula, nos louros endereçados a Operação Lava Jato, no congelamento de investimentos públicos no país, na reforma do Ensino Médio, na reforma trabalhista, e na defesa da provável reforma da Previdência.
Todas as medidas endeusadas pelos especialistas da grande mídia são, em boa parte, reproduzida por setores que são e serão os primeiros a serem prejudicados com o efeito prático dessas ações. O motivo porque abraçam a própria “morte” não é difícil de imaginar, são levados a reproduzirem o discurso que agrada e gera mais lucros para o capital financeiro, conhecido popularmente no Brasil como interesse do mercado.
Os especialistas da grande mídia, empregados dos oligopólios da imprensa nacional, que por sua vez é financiada, patrocinada e sustentada pelo mercado, são contratados para venderem sua força intelectual para atender os interesses de quem os paga, que é justamente o mercado financeiro. Diante desse cenário, é evidente que o espaço de circulação de quem diz, por exemplo, “que a grande corrupção não está no espaço público, mas sim no privado”, em hipótese alguma será convidado para falar os que os verdadeiros donos dos meios de comunicação não querem, e sabem que a população brasileira não pode ouvir.
Em seu mais recente livro, com o título de A Classe Média no Espelho, o sociólogo Jessé Souza afirma que parte da sociedade brasileira, em especial a classe média, é feita de imbecil pela elite dominante. Saindo da classe média, é possível pensar os efeitos dessa construção de discurso, hegemônico, dominante no processo eleitoral que está no início. Por exemplo, quando um indivíduo negro se posiciona contra o sistema de cotas, quando o pobre defende o estado mínimo, quando o precarizado luta pela extinção dos direitos trabalhistas, ou quando o servidor defende a instabilidade no setor público, e tantos outros exemplos, se configura como um claro reflexo do discurso dominante.
Diante dessa constatação, uma pergunta me parece ser importante, por que fazem isso? A resposta está contida nas linhas anteriores, mas nunca é demais reiterá-la, a reprodução das ideias dominantes é porque somente existem ideias dominantes circulando nos grandes meios de comunicação. Infelizmente só há um discurso, e o que poderia ser a antítese desse deixou, há muito tempo, de se fazer presente.
A presença estava nos trabalhos de base realizados pelo campo progressista, pelos sindicatos, associações, líderes de bairros, lideranças camponesas, igrejas humanitárias, artistas, intelectuais e tantos outros. Importante ressaltar, os atores sociais existem, mas os seus, e os nossos contradiscursos deixaram de ser reproduzidos, possibilitando que a hegemonia discursiva prevalecesse.
Os tempos são e muito provavelmente serão ainda mais sombrios, mas a alternativa para a construção da democracia nunca esteve no contradiscurso nos grandes meios de comunicação, até porque esses meios raríssimas vezes abriram espaços para as vozes destoantes, mas sim no colocar, literalmente, os pés no chão e reconstruir um discurso junto com as bases, junto com o povo pobre e oprimido desse país.
O caminho não é um contradiscurso para o povo, mas um contradiscurso junto e abraçado ao povo. A derrota do campo progressista não se explica pelo agora, a derrota começou quando o escritório de casa passou a ser mais importante do que a roupa suja de poeira.
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