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Ordem, para quem?



Não é novidade para ninguém, se comparado for as últimas décadas, o Brasil vive o seu momento mais tenso. A tensão se explica pelo medo que inúmeras pessoas estão tendo de se manifestar, quando o silêncio, nos mais diferentes espaços, se tornou uma estratégia de sobrevivência.


Os ataques extrapolam e muito o campo das ideias, atingindo fisicamente e, em casos mais extremos, de forma fatal algumas pessoas, como a lamentável violência para com o mestre de capoeira Moa do Katendê, com a travesti humilhada e assassinada no centro de São Paulo, que morreu ouvindo os sussurros de brutamontes que mataram pelo fato de ela ser o que é, ou seja, ser humano. Ou mesmo com a garota que teve a suástica gravada em sua pele porque usava uma camiseta com os dizeres #ele não.


A violência endereçada à determinados grupos, como negros, indígenas, mulheres, pobres e comunidade LGBTQ, sempre presente na história do país, tem se intensificado rapidamente nos últimos dias, porque existe a crescente crença de que é possível e natural eliminar o outro, o diferente, àquele que causa incômodo e, consequentemente, incomoda grupos que fazem da violência um hábito, quando tudo, segundo eles, é em nome de Deus e dos bons costumes.


No entanto, o incentivo e a naturalização da violência pode ser explicada pelo passado recente do país. Por exemplo, nos últimos anos, pobres e negros alcançaram espaços historicamente construídos para não serem se quer imaginados por esses grupos. Questões básicas, nada excepcionais, como direito a ter um diploma de nível superior abalou as estruturas cicatrizadas sobre a escravidão e o genocídio nessa terra. No entanto, as pequenas conquistas, se comparado com uma conjuntura humana, foram e continuam sendo inadmissíveis para uma parcela da elite que nos chicoteava em um passado não muito distante.


A chegada de pobres e negros ao estágio, historicamente ocupado por filhos da classe média/elite, se tornou inadmissível para àqueles que adoravam esfregar seus cursos de graduação para serem chamados de doutores/as pela população local. Hoje, essa mesma elite, chega nos espaços que antes ostentava à graduação e encontra o/a filho/a da empregada doméstica, do vaqueiro, do pedreiro e outras profissões dignas, mas pessimamente remuneradas, com títulos de mestrado e doutorado. Essa realidade, ainda pequena, mas nem por isso menos impactante, leva os detentores do privilégio ao delírio desconcertante, raivoso e preconceituoso.


Cresci ouvindo e lendo diretrizes construídas historicamente, no qual me faziam acreditar que no Brasil não havia preconceito, que os direitos eram para todos/as e que bastava trabalhar para todo mundo conseguir ter uma vida digna. No entanto, com o crescimento vem também o amadurecimento, exemplificado pelos cabelos brancos, ou pela falta desses.


Assim, se não há preconceito no Brasil, como explicar nossa realidade social a não ser pelos olhos do preconceito institucional? Quando olho para as favelas vejo negros e negras, quando olho para os presídios vejo negros e negras, quando olho para os desempregados, sem tetos, sem terras e mendigos, eu, infelizmente, vejo negros e negras. Afinal, essa triste realidade não pode ser uma mera coincidência. Não pode ser, e não é.


Moa do Katendê, negro, pobre e resistente, morto por se posicionar politicamente, silenciado por uma brutamontes que não aceitou a diversidade, esfaqueando até a morte o velho, mas resistente Moa do Katendê, que morreu lutando, quando poderia ter se acovardado e vivido, mas preferiu morrer de pé, do que se submeter ao jugo do opressor.


O que aconteceu com o mestre é reflexo da violência institucional do país, porque as mortes violentas acometem, principalmente, os negros e negras. Além dessa constatação, a morte de Moa do Katendê é visivelmente um presságio de um futuro próximo, nada animador, para o país, porque beliscar os privilégios da elite dominante é algo inadmissível.

Inadmissível para quem olha para o mendigo na rua e não se solidariza com o sofrimento, fingindo que não vê o sujeito do lado com dois filhos com os braços estendidos, enquanto o playboy ignorante, com o celular de última geração, esconde o aparelho com medo de ser roubado por quem deseja apenas um trocado para comprar um pão.


A inquietação da elite dominante é tamanha, embora não surpreendente, que abraçam o que há de mais retrogrado para não ter seus privilégios tocados, se escondendo por meio da ideia de ordem, família e Deus. Esse filme já vimos, não? Mas, afinal, que ordem é essa? Engana-se quem pensa que o termo está associado a ideia de segurança, pelo contrário, porque até o mais acéfalo sabe muito bem que violência traz um único resultado, a saber, mais violência.


Nesse sentido, ordem está relacionado com um passado, como já foi dito, de cinquenta anos atrás, quando ativistas sociais eram perseguidos, presos, torturados e mortos, quando a violência contra as minorias era muito mais intensa do que a presenciada nos dias atuais, quando professores/as não poderiam falar, caso falassem, o destino já estava traçado, não sendo nenhum um pouco favorável, se fossem demitidos estava de bom grado.


Mas, afinal, que ordem é essa? Quando a imprensa, mesmo fazendo média, como define Arnaldo Antunes, nem média poderia fazer, só lhe restando dois caminhos, ou propaganda institucional, ou receitas de bolo na página principal. Mas, afinal, que ordem é essa? É a ordem de tempos atrás, quando artistas e intelectuais eram perseguidos por se posicionarem contra um sistema que oprimia, e não protegia como dizem, garantindo o direito do seu zé trabalhar, para hoje seus netos dizerem que o seu zé era trabalhador e por isso não teve problemas com o regime opressor. Porém, os netos, sem consciência histórica, não entendem que para a existência de seu zé, outro zé não existe mais.


Mas, afinal, que ordem é essa? Era a ordem do funcionário/a sem direito, trabalhando muito e ganhando pouco, passando sufoco para levar o pão para a casa. Mas, afinal, que ordem é essa? Era a ordem da corrupção escondida, que engana muita gente iludida, pensando que não havia corrupção por não aparecer no jornal, entretanto esses jovens iludidos se esquecem, ou não conhecem que os jornais estavam proibidos de fazerem matéria, tendo que substituir as reportagens pelas já mencionadas receitas de bolo.


Mas que ordem é essa? Era a ordem do pobre e negro trabalhador, suando para o filho do dotô cursar as melhores universidades, quando na festa do final de ano, o filho do dotô esfregava o seu diploma pago com o suor do empregado que não havia concluído, se quer, o primário. Mas que ordem é essa? Era a ordem da recusa a soberania popular, porque quem governava fingia acreditar que o povo não sabia votar e muito menos conduzir o seu destino, tendo para isso a mão forte do estado, conduzindo tudo e todos para o abismo que parecia sem fim.


Hoje, parte da sociedade parece acreditar na sua incapacidade, defendendo a ideia de um “herói”, que segundo eles é de verdade, e que irá acabar com “tudo que está aí”. Mas se esquecem de um pequeno porém, porque quem fala que irá acabar “com tudo que está aí”, também faz parte do aí.


O discurso de ordem é sabido de um lado, que consegue enganar o outro lado, fazendo-os acreditarem em um discurso de salvação, mas que na verdade se voltará contra ele, caso seja pobre, negro, mulher, ou pertencente a comunidade LGBTQ.


É inegável que nos tempos sombrios há violência, se não houvesse violência não seria tempos sombrios. Porém, diante da constatação é inadmissível não perguntar, qual grupo prática e defende a violência? Olhemos para Moa do Katendê, brutalmente assassinado por um homem, no mínimo, malvado, que se recusou a aceitar a diversidade, pegando uma faca e dando doze facadas no pobre, negro e favelado, que atende pelo nome de Moa do Katendê. Violência há, mas quem prática e está defendendo a violência?


É provável que o silencio, observado o contexto, seja mais seguro, no entanto, em tempos de opressão, o meu silêncio se configura como ato opressor.

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