Rede geográfica é definida por Corrêa (1997) como “um conjunto de localizações geográficas interconectadas entre si por um certo número de ligações”, e com o avanço tecnológico dos meios de comunicação e de transportes advindos da revolução técnico-científica-informacional[1] do atual período de globalização estas conexões se tornaram cada vez mais dinâmicas e abrangentes, passando a ser um elemento crucial para a reprodução da acumulação no modo de produção capitalista. O estudo das redes nos permite compreender as transformações advindas da globalização, bem como as novas dinâmicas que se impõem sobre os espaços. Após a década de 70, diversas áreas de Mato Grosso foram incorporadas pela expansão da fronteira agrícola nacional, o que promoveu processos de desterritorialização e a produção de novas territorialidades sob o comando dos novos agentes sociais que se apoderam destas áreas, inserindo-as nos tempos rápidos do circuito produtivo globalizado de commodities através da modernização das redes técnicas.
A ocupação destas áreas ocorre por meio do que David Harvey (2005) chamou de apropriação por espoliação, conceito que visa explicar a atual forma de acumulação a partir da renda e uso da terra por meio da atuação em conjunto entre corporações privadas e o Estado. Harvey explica que, o Estado exerce um papel decisivo nos processos de espoliação ao fazer uso de suas atribuições e instrumentos como leis, editais e contratos para desvalorizar ativos, flexibilizar a legislação trabalhista, revogar direitos, fornecer financiamentos, promover conceções e privatizações favorecendo, assim, a atuação dos grupos coorporativos e assegurando seus ganhos. O Estado é responsável, também, pela construção da infraestrutura de redes de transportes, redes de comunicação e rede energética, estas redes são apropriadas de forma estratégica pelos grupos coorporativos que, através delas, exercem o controle sobre o território. No caso das áreas de expansão da fronteira agrícola em Mato Grasso estas redes são apropriadas por grupos corporativos nacionais e internacionais ligados à produção de commodities que se apoderam delas para dar fluidez à cadeia produtiva e ao escoamento da produção pelos corredores de exportação.
As práticas espaciais postas em curso pelos processos de acumulação por espoliação engendrados pelas grandes corporações em parceria com o Estado promovem a modernização do território, ao mesmo tempo que, concede a estes agentes sociais um controle hegemônico sobre a produção do território. Tal forma de modernização se apresenta como um instrumento da classe burguesa para promover a expansão do próprio modo de produção capitalista, capturando os lugares e moldando-os à sua imagem e semelhança, reconfigurando tanto aspectos infraestruturais, quanto comportamentais e subjetivos. Desta forma, conforme aponta Castilho (2019), os processos de modernização produzem privilégios para determinados grupos, mas também geram restrições e coerções para outros. O referido autor (2016) alerta para termos cuidado com as armadilhas de teorias dualistas que podem nos direcionar para uma interpretação equivocada, pois, aqui é preciso perceber o moderno não como o contrário do atraso, mas sim, como o motor de sua reprodução, perpetuando velhas estruturas de poder das elites agrárias do Brasil.
Produzidas por estas relações de poder, as redes se configuram como um elemento essencial para a expansão da modernização nestas áreas de fronteira agrícola, o controle sobre as redes é também o controle sobre o território. Sendo as redes também vetores de processos espoliativos, elas asseguram de forma seletiva as funções de poder, permitindo que determinados grupos corporativos exerçam um controle hegemônico sobre a fluidez da circulação. Rafestin (1993) nos aponta que “a circulação é a imagem do poder”, assim, o fluxo de pessoas e bens nos permite, até certo ponto, ver quem exerce o controle sobre o território. Todavia, as redes de comunicação permitem que os sujeitos que exercem esse poder possam de forma distante e dissimulada controlar, vigiar e interceptar os fluxos praticamente de forma invisível. E é aí que, para Rafestin se encontra a essência do poder, “ver sem ser visto”. Por vezes, ao analisar os processos de modernização incutimos no erro de atribuir as transformações na produção do espaço apenas como efeito do avanço do Capital nestas áreas, mas, Rafestin nos provoca a dar nome a estes sujeitos e apontar quais os grupos e corporações que se apoderam do território reestruturando-o conforme seus interesses.
Nas áreas de expansão da fronteira agrícola em Mato Grosso os processos de modernização são conduzidos pela parceria entre Estado e corporações agroindustriais de grãos e carnes oriundas das regiões sudeste e sul do Brasil como a Pro-Soja, Agropecuária Maggi, PS Agro, Excelência, JBS, entre outras e também por multinacionais e investidores estrangeiros como a Cargill, Bunge, Agrenco, Bayer, John Deere e outras. Estes grupos passam a atuar nestas áreas a partir da década de 1970 atraídos por estímulos de governos que tinham o objetivo de ocupar “espaços vazios” no Centro-Oeste brasileiro e transformar essas áreas em corredores de exportação com grandes projetos agropecuários e políticas de colonização públicas e privadas. O que na prática foi um verdadeiro processo de pilhagem de terras por meio de processos espoliativos que alteraram a estrutura fundiária, facilitando a grilagem de grandes propriedades ou a aquisição a um baixíssimo preço.
Bernardes (2015) indica que neste período o Estado assume a condição de indutor do desenvolvimento capitalista, promovendo ações diretas para a ocupação do território, como a abertura de vias como as BR-163 e BR-158, linhas especiais de crédito, incentivos da SUDAM, construção de galpões de armazenamento, implantação de rede elétrica, oferecendo vantagens locacionais em nível infraestrutural, econômico e político para tornar o território mais atraente aos interesses do capital global. Na década de 1990 as políticas neoliberais e as inovações tecnológicas advindas da revolução técnico-cientifica-informacional promovem um novo impulso de modernização nestas áreas e concedem à essas grandes corporações um maior poder de controle sobre o território. Para Bernandes (2015) é neste contexto, que os fixos se multiplicam, se renovam e se diversificam ao mesmo tempo em que os fluxos se intensificam e a circulação acelera, valorizando os espaços e transformando a divisão técnica e social do trabalho em função da acumulação ampliada de capital.
A cada período de modernização estes agentes promovem reestruturações espaciais visando adequar o território às suas novas funções, moldando-o conforme seus interesses. Ao fazer uso de técnicas agrícolas modernas como o uso de sementes geneticamente modificadas, fertilizantes, agrotóxicos e maquinários estas agroindústrias ampliam a escala de produção e seus ganhos. Segundo Frederico (2013), a chegada destes novos agentes não trouxe apenas uma modernização da agricultura, mas também uma alteração na antiga relação entre o campo e a cidade, se antes era o campo que abastecia a cidade, agora é a cidade que se especializa para atender as demandas do campo modernizado. Os núcleos urbanos que surgem ou que são adaptados à estas novas demandas do agronegócio globalizado são chamados por Elias e Pequeno (2007) de cidades do agronegócio. Conforme aponta Frederico (2013), estas cidades concentram os fixos (escritórios de contabilidade, bancos, prédios de filiais, aeroportos, terminais de transporte, sistemas de energia e de comunicação) que são fundamentais para a circulação dos fluxos de produtos, pessoas, informações e capitais inerentes aos circuitos produtivos e aos círculos de cooperação agrícola.
A nova racionalidade que se impõe sobre o campo e a cidade nestas áreas, através da modernização das redes técnicas sob o controle das grandes corporações e do Estado, resulta na implantação de uma logística mais eficiente de produção e circulação, na redução do custo da produção, no aumento da produtividade e na superexploração da força de trabalho e dos recursos naturais. Contudo, apesar das evidentes transformações estruturais e sociais que ocorrem nestes locais o controle político e decisório que designa a forma de produzir, armazenar, transportar, os custos, os créditos, os preços e os prazos provem de ordens de grandes empresas, especuladores financeiros do Estado, estes localizados em centros decisórios distantes (em outras regiões do Brasil ou no exterior) e que exercem seu poder através das redes informacionais. Esta relação é descrita por Santos (1996) como horizontalidades e verticalidades, enquanto as horizontalidades constituem o lócus da produção, da divisão do trabalho, da circulação material e da cooperação, as verticalidades constituem o controle das ações, a vigilância e a manipulação do território a distância e de forma mais ampla, tanto economicamente, politicamente, como geograficamente, assegurando a reprodução ampliada de capital em uma ordem econômica global.
Por fim, convém destacar que tais processos espoliativos que permitem que as grandes corporações se apoderem das redes em setores estratégicos do Brasil só são possíveis graças à uma postura entreguista, submissa e perversa por parte do Estado. O resultado da apropriação privada e do controle corporativo das redes é “a formação de espaços privilegiados, a segregação e as restrições de usos, além de implicações desastrosas aos recursos naturais, as comunidades tradicionais e para o patrimônio público” (Castilho, 2019, p. 315). Desta forma, se faz necessário que os excluídos se organizem politicamente em uma luta contra as atuais formas de acumulação por espoliação, e assim, possam construir juntos uma nova forma de uso para as redes que possa ser mais descentralizada e democrática.
Referências:
BERNARDES, Julia Adão. Novas fronteiras do capital no cerrado: dinâmica e contradições da expansão do agronegócio na região Centro-Oeste, Brasil. Scripta Nova, Barcelona, v. 507. p.1-28, 2015.
CASTILHO, Denis. Modernização, modernizações. In:_. Modernização territorial e redes técnicas em Goiás. Goiânia: UFG, 2016.
CASTILHO, D. Redes e processos espoliativos no Centro-Norte do Brasil. In: OLIVEIRA, F. G. de et al (Orgs.). Espaço e economia: geografia econômica e a economia política. 1ª ed. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
CORRÊA, Roberto L. Trajetórias geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
ELIAS, Denise; PEQUENO, Renato. Desigualdades socioespaciais nas cidades do agronegócio. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 09, n. 1, p. 25-39, 2007.
FREDERICO, Samuel. A Modernização da Agricultura e o Uso do Território: A dialética entre o novo e o velho, o interno e o externo, o mercado e o estado em áreas do cerrado. GEOUSP – Espaço e Tempo, São Paulo. Nº 34, p. 46 a 61, 2013.
Harvey, David. A acumulação via espoliação. In:__. O novo imperialismo. 2ª Edição. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do poder. SP: Ática, 1993.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996.
Notas:
[1] Conceito elaborado por Santos, 1996.
*Texto orignalmente produzido para atender ao requisito avaliativo da disciplina TÓPICOS ESPECIAIS EM DINÂMICA SOCIOESPACIAL (REDES E PRODUÇÃO DO
TERRITÓRIO) do IESA – UFG – Goiânia - GO.
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