Por Karla Teixeira[1]
Tarde ensolarada de agosto e a professora se aprontava para a escola ir. Tinha certeza que naquele dia contaria sobre a origem da lenda do pequi, seu plano construído a partir da realidade cerradeira, não a deixava mentir. Passou um batom vermelho, sentiu-se emancipada, afinal; a educação a trouxe até ali.
Além de livros, o seu embornal carregava o sonho de apresentar para seus alunos o caminho que poderiam assumir. O nome da professora era Flor, daquelas que se tem vontade de cheirar, ela veio da cidade grande para no interior, no Cerrado resolveu ficar.
Aqui ela tem um desafio que Mazé da coordenação já tratou de lhe apresentar:
- Este é o caderno da disciplina, você vai geografizar. O material é positivamente direcionado, melhor não há.
Questionar o que? Era o seu primeiro dia ali, mas como compreender uma geografia pensada tão distante? Ela precisava resistir!
Ao entrar na sala de aula, encontrou sobre a mesa uma maçã vermelhinha, ao lado tinha um cupcake e uma garrafinha com um líquido cor de rosa, no rótulo dizia: Guaraná Jesus. Era um sinal de boas vindas, mas muito sobre aquela turma lhe dizia.
Deu bom dia e antes mesmo de ao cumprimento responderem, alguns foram logo afirmando:
- Professora, minha mãe pediu para a senhora não falar sobre política, afinal; estamos a alguns quilômetros de Brasília.
Flor se despetalou, sentiu que o chão desmoronou!
O desafio estava ali, pois para Flor, é possível pensar política através da educação sem partir de uma lógica binária, mas precisava causar boa impressão, então foi logo contrapondo com certa precação:
- Brasília também está no cerrado, logo as distâncias aqui não serão apreciadas, dialogaremos sobre realidades, será que todas estas serão contempladas?
De cara Flor percebeu que os pais, ou melhor; as mães eram muito participativas na rotina da escola, basta saber se na dos filhos também. Aquelas crianças estavam distantes, não apenas do livro didático, mas por terem vidas segregadoras, que invisibilizam sujeitos, nessa situação, que geografia ensinar?
Ela então partiu daquele universo, precisava desvendar.
Pergunta os fez. Questionou sobre a vida, as diversões, o ir e vir para a escola e até mesmo sobre a rua de suas casas. Não pretendia mapear vivências, tão pouco adequá-las, mas compreender aquela realidade que desconsidera a complexidade e o saber de cada ser.
Dia seguinte Mazé, a moça da coordenação foi logo apresentando as devolutivas das famílias à nova professora:
- Pediram para ver seu plano de aula, pois a garotada nada aprendeu, só contaram histórias...
Então Flor ainda cautelosa disse que os educandos precisavam dizer-lhe com suas próprias palavras, compartilhar o que sabem para apreenderem receber.
Os questionamentos eram muitos, chegavam todo dia, faziam Flor se perguntar, qual o sentido de ser professor?
Então ela se lembrava que mesmo na cidade grande onde ela morava oportunidade era rara, quando surgia tinham que agarrá-la. Foi assim que ela por milagre conseguiu terminar o EJA. De família humilde, com muito esforço a faculdade conseguiu cursar, se empenhou o máximo para o diploma na parede pendurar. Se especializou, pós- graduação também cursou. Flor tem muitas vivências, pois nasceu em um chão árido, sua cor é resistência, carrega espinhos implantados por uma sociedade injusta e sem consciência.
A que ponto nossas escolhas contribuem para nossas vivências?
Se no chão árido da escola Flor compreendeu que não pretendia educar ninguém mas através da educação ela escreveria sua história, então naquele chão fértil de Cerrado ela precisava ficar, pretendia mediatizar o saber, conscientizaria aqueles sujeitos de seu papel para realidade deles mudar, pois não existe nada perdido, é preciso esperançar.
SOMOS TODOS FLORES!
[1] Mestranda do Programa de Pós Graduação em Geografia (PPGEO) da Universidade Estadual de Goiás – Campus Cora Coralina.
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