
Na minha infância sempre ouvia das pessoas que Cuba era um lugar perigoso. Nas prosas cotidianas por vezes ou outra o país era sinônimo de espaço tenebroso. Era daqueles lugares que íamos, mas que não tínhamos certeza de voltar. Local de sujeitos sanguinários; Fidel Castro, Che Guevara, monstros, ditadores, comedores de criancinhas e outros adjetivos “afáveis.” Como filho de camponês nunca imaginava na minha infância que sairia para tão longe do meu condado, as margens do Rio Índio, a comunidade do Caiapó.
Na escola e sobretudo na universidade imprime novas pegadas pelo espaço. Visitei diferentes lugares Brasil afora. Observei, andei e ouvi sobre diferentes con-textos, porque ao fim e ao cabo, toda paisagem é um texto. Cuba permanecia como lugar obscuro, desconhecido, fetichizado. Em novembro de 2017 recebi um convite do grupo Dona Alzira para compor uma missão científica que visitaria o país. A indecisão, a preocupação com os afazeres do trabalho tolheu inicialmente meu impulso. Mas a prosa com o filho de outro camponês, mais avançado nos anos, também pouco afeito a sair do seu condado, Itapuranga, me fez animar.
O professor Valtuir propôs que elaborássemos um artigo sobre as lutas camponesas em Itapuranga. Cocei a cabeça, matutei um pouco e decidi topar a empreitada. Aquela era uma oportunidade de ouvir, observar, sentir e caminhar por outros lugares. Escrevinhamos o artigo, recorremos a outro caboclo, ouvinte de moda caipira, o querido Sebastião Rafael Gontijo, conhecido carinhosamente por nós como “Tião Lobo” para arrematar o nosso texto. Pegamos o pássaro voador e no seu primeiro pouso os sentidos trouxeram a massa cinzenta aspectos interessantes.
No Panamá decidimos visitar a capital do país, Panamá. Na minha saída a face do Estado apareceu, fui barrado. Havia similaridade do meu nome com alguém que não era bem quisto no país. Apesar da reação do nosso querido Tião, que ficou mais bravo que “cascavel acuada” e preocupado com a situação, tudo se resolveu, afinal eu nunca havia andado por estas bandas. No Panamá, o olho que olha carregado de outros olhares percebeu contradições prementes.
Na Geografia dizemos que a paisagem não nos revela tudo, mas o fato é que revela muita coisa. Prédios suntuosos, carros hipermodernos, contrastados com favelas, prostituição, mangues e outros espaços poluídos. No aeroporto os “invisíveis” circulavam. Aqui e acolá topávamos com um indígena varrendo, retirando lixo, realizando serviços de baixa remuneração. Na capital os rostos, a estatura, a indumentária retratava o traço indígena e negro da nuestra latino América.
A geopolítica também saltava aos olhos atentos, a bota do Tio Sam deixou suas marcas no América Central. O Canal do Panamá, iniciado pela França e construído pelos EUA nos demonstrou como a política do Big Stick sempre raçoou na América Latina. A América para os americanos, para os americanos que são estadunidenses, mas que por erro, ou quiçá, pela força da psicosfera ideológica são denominados de americanos.
Canal estratégico, o tempo rápido, a ditadura do consumismo, o vaivém acelerado das mercadorias do comercio mundial, a reprodução ampliada do capital impõe a criação de fixos, de artérias artificiais no substrato material. O canal é uma das “aortas” fundamentais do comércio internacional. Sua obstrução representa graves consequências para pulsão do capitalismo. Por isso os EUA estão de olhos e ouvidos atentos ao Panamá, país que gravita em torno de um canal.
Depois deste “dedo de prosa” voltamos ao aeroporto, o território do Estado, o controle de acesso novamente se revelou. Verificação de passaporte, observação de similaridade de nomes e liberação. Finalmente pegamos o voo em direção a Havana. No avião um papo com um hermano argentino, proseamos sobre agronegócio, os governos vigentes nos dois países e, claro, sobre Cuba. O sol já tinha se escondido quando o avião pousou em Havana. Desci da aeronave e meus olhos notaram a cor vermelha reluzente do aeroporto. O que quer dizer uma cor? Para muitos não quer dizer nada, evidente que não diz tudo, mas lembre-se cores, imagens, frases, monumentos jamais são despidos de sentido.
Deslocamos para o local de repouso, pela primeira vez vivenciei a experiência de hospedar numa casa. Cuba permite aos habitantes locais, devidamente autorizados, alugar partes da casa para visitantes. Elas são identificadas por uma caravela na porta. Na residência/hotel tomamos café e proseamos com os seus proprietários. Eles emitiram suas percepções sobre o embargo econômico imposto pelos EUA, o valor irrisório dos salários, as consequências da queda URRS e o sentimento de morar num país socialista, dentre outras questões.
Durante a estadia na casa percebemos o controle do Estado e a constituição de linhas de fuga em inúmeras situações. Havia um caderno de registros para o controle dos proprietários e certamente para cumprir normatizações do Estado. Também notamos o acesso clandestino a internet. No quarto notei, ao ligar a televisão, que os canais eram aqueles autorizados pelo Estado cubano, como a TV estatal.
No outro dia despertamos cedo. Pegamos o ônibus em direção a província de Pinar Del Rio. No deslocamento os sentidos estavam atentos, a janela era minha televisão, meu programa preferido era a paisagem. Ora uma lavoura de tabaco, outra uma de arroz, feijão, ou uma criação de porcos e cavalos, aliás, muitos cavalos e bois. No Brasil denominamos de “boi de carro”, devidamente domados para a lida do campo.
O olho que olhava começava a perder espaço para as ideias que matutavam na cachola. Uma primeira percepção, este país tem serias dificuldades com o avanço das forças produtivas. A técnica e a tecnologia, que são sobretudo políticas, são necessárias ao ser humano. Mas cabe sempre perguntar quem as controlam e a quem servem. A “Revolução Verde” serviu sobretudo as corporações e os latifundiários. E se Cuba não detém o domínio da mecanização, da produção de fertilizantes sintéticos, agrotóxicos e sementes transgênicas recorreu a qual modelo? “Caboclo” curioso logo começa um fio de conversa com quem pode responder.
O professor que nos acompanhava da Universidade de Bayamo explicou que o fim da URRS dificultou o acesso ao pacote tecnológico da “Revolução Verde”, associado ao embargo estadunidense. Cuba teve de romper com o dito modelo e aderir a perspectiva de produção agroecológica. Por isso neste país caribenho não ocorreu transição agroecológica, mas ruptura com o modelo da “Revolução Verde.” Mas atenção aos desavisados, isto não significa que o campo não seja produtivo, a agroecologia em construção no país permite dinamismo e qualidade de vida no campo cubano. Diferente do Brasil, em que o campo foi esvaziado para o boi, a soja, a cana, o milho, etc, Cuba possui inúmeras vilas e distritos rurais.
Os camponeses construíram no país um campo diverso, policultor, produtivo e pouco afeito aos mares de soja, milho, sorgo, cana e criação bovina. Não que eles não existam, principalmente de cana, mas não possuem a proporção que tem no Brasil, estão sobretudo nas fazendas estatais. O ônibus continuou seu trajeto, e o tabaco marcou a paisagem, conferiu identidade a província de Pinar Del Rio.
O almoço foi justamente na casa de um produtor de tabaco, o carismático “Paco”, um senhor de baixa estatura, com traços espanhóis e de voz arrastada, daqueles sujeitos que falam assim “meio pra dentro” como se diz em Goiás. Após degustar arroz mouro, malanca, uma espécie de batata inglesa frita em fatias, bife de porco e outros petiscos sentamos para prosear com Paco. Ele nos falou de sua trajetória, os saberes envoltos na produção fumageira e na confecção do charuto, as mudanças ocorridas na política agrícola e agrária com a revolução e os anseios para o futuro.
Os professores cubanos apresentaram as estratégias do Estado e da Universidade para o campo. O desenvolvimento local, tendo como eixo central o turismo rural, assentado na cultura e na identidade camponesa foram enumerados como elementos estratégicos para geração de renda e bem-estar no campo cubano. Turismo também associado a exploração das paisagens cénicas, das formas geomorfológicas esculpidas pelo tempo geológico.
No trajeto de Havana a Pinar Del Rio a agricultura, a pecuária e o turismo se apresentaram como setores de dinamização da economia. O turismo, a despeito das consequências deletérias, é a grande aposta cubana para o desenvolvimento do país. Retornamos para Havana, no ônibus Cuba provocava corpos, mentes, desejos, anseios e sonhos. Silêncios, percepções apressadas de negação, de encantamento eram parte dos sujeitos da missão.
No outro dia tivemos o “dia livre” para explorar Havana. Percorremos ruas, circulamos por praças, visitamos museus, mercados, lojas, exploramos a capital do país. A Praça da Revolução, o Capitólio, a Universidade de Havana, a avenida Maricon, dentre outros lugares no revelaram um pouco da cidade. Traços arquitetônicos europeus, principalmente Havana velha, carros da década de 1950 e 1960, como o Cadilac, sujeitos dançando e cantarolando felizes ao som de salsa, jovens jogando beisebol, futebol e praticando atletismo em praças e centros esportivos.
Não vimos zumbis, denominação dada no Brasil aos usuários de crack. Do mesmo modo, nas conversas com os habitantes, notamos a irrisória penetração da cocaína, da heroína e de outras drogas ilícitas no país. Mas vimos borrachos (bêbados), em número pequeno é verdade, prostituição. Tivemos contato com espertalhões e malandros, que desejavam nos explorar nos serviços de táxi, com a venda de charutos, ou outro produto e serviço oferecido.
Também ficou evidente certa clivagem social, em Havana velha há inúmeros cortiços, com homens, mulheres e crianças que residem em número significativo num único local. Do mesmo modo, recebem uma espécie de “ração mínima” do Estado. Diríamos algo similar a uma cesta básica contendo produtos muito básicos. Da mesma maneira, tem acesso gratuito à saúde, educação, dentre outros direitos sociais. Há alguns pedintes na rua, certamente oriundos deste grupo social. Mas não há moradores de rua.
Outro elemento que saltou aos olhos foram os índices irrisórios de violência urbana e a existência e ocupação dos espaços públicos da cidade. Diferente da capital federal e de capitais estaduais como Goiânia no Brasil, Havana, a capital federal de Cuba, tem suas praças ocupadas por jovens, idosos, crianças. Nas nossas andanças vimos crianças correndo nas praças, sorrindo, brincando, jovens jogando futebol, paquerando, dançando, casais circulando, tomando sorvete. Percebemos que há elementos invizibilizados, mas que são fundamentais para a felicidade e serenidade de um povo.
No outro dia percorremos 800 km em direção a província de Gramma, no caminho, diferente do deslocamento para Pinar Del Rio, notamos a presença mais intensa da cana e da criação bovina, sobretudo para produção leiteira. Mas vimos plantações de malanca, goiaba, arroz, feijão, criações de porcos dentre outras culturas e criações animais.
Na província de Santa Clara visitamos o Museu de Ernesto Che Guevara. A despeito das tipificações, acepções pejorativas a seu respeito, um elemento saltou aos olhos. “Che”, em nome de suas convicções, de suas ideias revolucionárias, entregou sua vida em nome de uma causa. Poderia ter terminado o resto de seus dias ocupando alguma posição de poder no governo cubano, mas decidiu ir para o Congo, para a Bolívia, onde foi assassinado durante sua atividade revolucionária. As ideias movem o mundo e também moveram “Che”, um sujeito profundamente inquieto e incomodado com a realidade mundial.
No trajeto, a rodovia, à medida que se distanciava da capital perdia qualidade, nada que se aproximasse das crateras de muitas rodovias estaduais brasileiras. Havia estreitamento da pista, ausência de acostamento e solavancos com buracos cobertos com massa asfáltica. Chegamos a Bayamo, o trio buscapé de Itapuranga, eu, Valtuir e “tião lobo” direcionamos para a residência/hotel. Um senhor sisudo, sério e de poucas palavras nos recebeu. No decorrer da estadia percebemos que era introspectivo, solicito e educado.
No outro dia fomos a universidade local, visitamos os seus espaços e percebemos o vínculo profundo entre o projeto de desenvolvimento nacional com as ações de ensino, pesquisa e extensão que ali são desenvolvidas. No outro dia circulamos por Bayamo, uma cidade belíssima, com traços coloniais, visitamos museus, conhecemos as figuras proeminentes da dança, da música, da pintura, do esporte e do teatro cubano. Mas notamos certa ausência de saneamento básico na capital da província. A mesa com os professores da Universidade de Gramma revelou o esforço de revisão do projeto de desenvolvimento nacional cubano, sem abrir mão dos pressupostos socialistas.
A crítica da centralização do Estado, o incentivo aos negócios autônomos, a iniciativa pessoal, em detrimento a iniciativa do Estado, a construção de uma política de turismo, de agroecologia, de industrialização atada ao desenvolvimento local e as potencialidades regionais sobressaíram nas falas. Do mesmo modo, críticas foram tecidas ao embargo econômico. Ficou evidente que sem capital não há investimento produtivo, sem isto não há arrecadação, consequentemente o Estado como o grande “papa” torna-se inviável. Ficou obscuro o lugar social dos militares na sociedade cubana e a possível ampliação da diferenciação social, constituída sobretudo com o fim da URSS.
No outro dia fomos a Serra Maestra. No caminho o traço camponês ficou notório na paisagem, pessoas circulando pela rodovia de carroça, a cavalo, sujeitos arando o solo, carpindo a terra, proseando. Pequenas vilas e casas eram intercaladas com plantios de arroz, feijão, goiaba, malanca, café agroecológico sombreado e criação de porcos. Da mesma forma, tal como nos outros lugares que circulamos, a paisagem era apropriada por signos da revolução; frases, imagens de revolucionários mortos, propaganda do Estado cubano eram recorrentes ao longo da rodovia. Se no mundo capitalista os outdoors, as placas de publicidade reproduzem o sonho capitalista, em Cuba reforçam os signos e símbolos da revolução.
Visitamos e ouvimos sobre o trabalho desenvolvido na universidade local, que reproduz a mesma política universitária da instituição da província de Gramma. Também tivemos contato com a atuação do Estado cubano com sujeitos portadores de necessidades especiais. A ação é recente em Cuba, mas tem produzido cidadania aqueles que necessitam de tal política. Almoçamos e retornamos para Bayamo. Serra Maestra ficou na nossa memória pela sua paisagem movimentada, com serras elevadas e vales férteis, com massiva presença camponesa.
Do mesmo modo, ficou as histórias da revolução, dos sujeitos mortos em nome de uma causa e da rede de apoio camponesa fundamental aos revolucionários e ao êxito da revolução. Cuba permanece como fetiche. Vende-se o país como mercadoria, como um dos últimos rincões do mundo socialista. Isto atrai visitantes, com seus olhares, hábitos, costumes, percepções, concepções e práticas. O risco de apropriação da subjetividade é real, a captura dos desejos, do afeto, dos sonhos e dos projetos do povo cubano é premente.
Resistências se articulam na educação, nos meios de comunicação e na cultura de defesa da revolução. Mas isto não implica prever até quando Cuba permanecerá sob o regime socialista. Para isso aguardemos o movimento da história.
Também não é um país perfeito, como não é nenhum país do mundo, porta suas contradições. Mas os cubanos ainda não perderam a capacidade de sonhar, de lutar por um projeto nacional. Do mesmo modo, não lhes roubaram a humanidade, são afetuosos, receptivos, sensíveis, solidários, coletivos e alegres. Cuba não é um lugar perigoso, muito pelo contrário. Então vai pra Cuba, aceite este xingamento preconceituoso e que revela profundo desconhecimento do que é o pais. Lá você terá contato com um espaço que vai te melhorar como ser humano, a não ser que você tenha medo e incapacidade de debater e discutir a diferença.
Texto:
Edson Batista da Silva
(Professor de Geografia da Universidade Estadual de Goiás – Câmpus Itapuranga)
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