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Vozes do orgulho: o silêncio de alguns e o distanciamento de tantos outros

Foto: Pedro Parreira

No último dia 28 de junho, o município de Itapuranga, interior do estado de Goiás, experienciou um momento histórico. A partir da iniciativa de jovens da sociedade, realizou-se o primeiro encontro para celebrar e valorizar os direitos da comunidade LGBTQIA+ no município. O encontro ficou caracterizado pela diversidade, pela beleza proporcionada por meio da multiplicidade de cores, do envolvimento e acolhimento de todas as pessoas da comunidade, a todos e todas que participaram do encontro, independentemente da orientação sexual.


Além dos fatores mencionados, o encontro ficará registrado na memória e no imaginário social como um momento de celebração do amor. Não existe nada mais humano do que a capacidade de amar e consequentemente ser amado/a. Diante de um contexto social marcado pela ascensão do neoconservadorismo, celebrar o amor, a felicidade e a alegria de ser o que é, indubitavelmente, é um ato revolucionário. Em tempos sombrios, dominado por uma retórica do ódio, amalgamada com fundamentalismo religioso, associada ao esgarçamento da coletividade, o primeiro encontro da comunidade LGBTQIA+ no município de Itapuranga também foi pedagógico ou didático.


A saber, evidenciou que uma das maneiras de enfrentar o estado suicidário e a política de autodestruição desenhada pela extrema direita passa, prioritariamente, por pensar e atribuir sentido à vida de maneira coletiva. Destarte, o sentido de comunidade não poderia ser mais apropriado, principalmente quando se leva em consideração o poder da linguagem neoliberal, introduzindo no cotidiano termos que só fazem sentido dentro de uma sociedade dominada economicamente, social e culturalmente pela retórica do neoliberalismo. O primeiro encontro da comunidade LGBTQIA+ sinalizou para um outro caminho, para uma outra possibilidade de sociedade, tendo o princípio do comum, a ideia de comunidade enquanto um horizonte de expectativa, onde e quando o problema de um/a se torna um problema de todos/as/es.


Um outro fator a ser ressaltado esteve na coragem e na capacidade de resistência dos/as jovens que ficaram na responsabilidade da organização do primeiro encontro da comunidade LGBTQIA+ no município de Itapuranga. Pessoas jovens, de diferentes orientações sexuais - lésbicas, homossexuais, mulheres trans, pessoas não binárias - enfrentando todas as formas de preconceito, resistindo aos inúmeros discursos de ódio, intolerância, homofobia, transfobia e tantas outras formas de violência. O poder de mobilização daqueles/as que não aceitam as pequenas frestas abertas na estrutura patriarcal e heteronormativa, sinceramente, já era esperado.


A sociedade brasileira tem uma formação histórica, social e cultural marcada por um modelo de sociabilidade violento, direcionada especialmente para grupos ou segmentos que não se enquadram dentro da caixa conservadora/reacionária. Essa formação sociocultural faz do Brasil um dos países mais perigosos do mundo para pessoas da comunidade LGBTQIA+. Diante do histórico, da formação social e da triste realidade do tempo presente, a reação conservadora de parte da sociedade era muito previsível. No entanto, quando se acompanha a materialidade dessa reação, atacando e destilando ódio para todos os lados, assusta, amedronta, machuca e violenta física e psicologicamente todas as pessoas que estiveram envolvidas com o primeiro encontro da comunidade LGBTQIA+, especialmente aqueles e aquelas que estiveram na organização do encontro. Foram dias difíceis, porém a capacidade de resistência prevaleceu e o encontro, reitero, foi lindo, acolhedor, pedagógico e humanizador.


Se a reação violenta de parte da sociedade era previsível e esperada, não se esperava o silêncio de alguns e o distanciamento de tantos outros. Quando do surgimento da notícia de que jovens da comunidade LGBTQIA+ estavam organizando um encontro no intuito de celebrar a diversidade, o direito de viver com dignidade, ser amado e amada, imaginava-se que o campo progressista itapuranguense - partidos políticos de esquerda, intelectuais universitários e movimentos sociais organizados – participaria ativamente do encontro. No entanto, a hipótese não se sustentou na prática, pelo contrário. O que se acompanhou nas últimas semanas, fazendo ressalvas às importantes exceções, foi um silêncio assustador da esquerda itapuranguense. Um silêncio que, evidentemente, diz muito sobre o estado da arte do campo progressista brasileiro e os limites de atuação desse setor.


O filósofo Vladimir Safatle, desde o início da última década, tem defendido a tese de que a esquerda brasileira morreu[1]. A afirmação do filósofo parece ser contraditória porque, nesse momento, quando olhamos para a configuração política do país, encontramos em vários lugares - municípios, estados e no governo federal - partidos de esquerda na coordenação e na condução dos projetos políticos desses espaços. Porém, a crítica de Safatle não está relacionada ao fato de os partidos de esquerda terem condições de alcançar ou não o poder, mas ao fato de a esquerda brasileira ter perdido o sentido da retórica revolucionária, não tendo mais capacidade ou disposição para abraçar todas as pautas que reúnem condições de transformar radicalmente a sociedade.


Na concepção do filósofo, a única força que se utiliza de um discurso de mobilização social no tempo presente, com capacidade de inserção nas camadas populares, é a extrema-direita. Nesse sentido, restou ao campo progressista ou mesmo à esquerda político-partidária/intelectual o discurso de manutenção da ordem, a defesa inconteste de um modelo de sociedade pautada na democracia liberal/burguesa. Diante da incapacidade da esquerda de mobilizar mentes e corações para uma transformação efetiva da sociedade, relegada unicamente à institucionalidade liberal-burguesa, Vladimir Safatle é categórico ao afirmar que a esquerda brasileira morreu.


Na situação específica de Itapuranga, é difícil transportar a tese de Safatle e apresentá-la como uma leitura explicativa do distanciamento da esquerda do primeiro encontro da comunidade LGBTQIA+ do município. Possivelmente, algumas pessoas poderão levantar a hipótese de que o distanciamento esteve relacionado ao fator da pauta identitária em detrimento da luta de classes. Afinal, nas últimas décadas, com a participação cada vez mais ativa e importante dos movimentos feministas, da organização coletiva da população negra e periférica, lutando cotidianamente contra as diferentes formas de racismo, e com a ocupação de espaço por parte da comunidade LGBTQIA+, setores importantes da esquerda têm levantado a tese de que a luta de classes tem perdido espaço nas reivindicações e nas mobilizações do campo progressista, sendo suplantada pelas denominadas pautas identitárias. Diante dessa leitura, esses setores não têm se envolvido na luta por direitos dos segmentos mencionados anteriormente.


Essa leitura, apresentando uma pauta identitária versus uma luta de classes, é, a meu ver, uma interpretação equivocada da realidade. A condição de vida da maioria da comunidade LGBTQIA + é marcada por uma profunda precarização social, por uma exploração do sistema capitalista sem precedentes. Lutar pelos direitos da comunidade é, também, lutar contra o capitalismo e suas mais diversificadas formas de violência. Afinal, a estrutura do Capital se moldou e se consolidou historicamente por meio de um modelo de sociedade patriarcal e heteronormativo, legitimando uma violência concentradora de renda e de riqueza, centrada na escravidão da população negra, no genocídio dos povos originários, na violência contra as mulheres e na invisibilidade das pessoas distantes das relações heteronormativas.


Não é necessário fazer muito esforço para entender que a pauta identitária ou a pauta dos costumes está diretamente associada à luta de classes. Porém, uma parcela considerável da esquerda brasileira entende que a luta por direitos de alguns segmentos da sociedade esvazia de sentido a própria luta de classes. Além da contradição inerente, evidenciando qual o limite e disposição de atuação de alguns setores progressistas, não tendo disposição para defender e garantir direito de existência para todos/as, abre-se um precedente muito perigoso a partir dessa leitura, fortalecendo, justamente, o que essa esquerda afirma categoricamente combater. A saber, o próprio sistema capitalista. Refiro-me, nesse ponto, aos perigos do neoliberalismo progressista.


O neoliberalismo progressista está muito voltado para a ideia da representatividade. Essa razão de ser do próprio sistema capitalista é muito perversa, moldando o imaginário a acreditar que é suficiente alguém da comunidade LGBTQIA+ conquistar um determinado espaço de poder para toda a luta e reivindicação por direitos e dignidade ter sido recompensada. Evidentemente que é muito importante ter pessoas lésbicas, homossexuais, transexuais, não binárias ocupando espaços que, historicamente, sempre foram ocupados por pessoas heteronormativas. No entanto, a ocupação desses espaços não é suficiente para transformar efetivamente a realidade social, pelo contrário. O neoliberalismo progressista permite a inserção de alguns indivíduos justamente para não modificar o modus operandi da sociedade.


Por exemplo, enquanto temos mulheres e homens trans participando da teledramaturgia e ocupando outros espaços de grande visibilidade, a expectativa de vida de uma mulher trans no Brasil é de um pouco mais de 35 anos. A morte dessas mulheres é resultado da violência física, do discurso de ódio e da transfobia inerente ao sistema capitalista. Essa constatação é inaceitável e, em hipótese alguma, não deve ou deveria ser naturalizada. A ocupação de espaço das mulheres trans, reitero, é importante, mas não é suficiente para uma transformação da realidade social. O neoliberalismo progressista proporciona justamente o fenômeno da representatividade, procurando, desse modo, manter intacta toda a estrutura social e econômica da sociedade.


No entanto, quando o campo progressista se afasta da luta pelos direitos da comunidade LGBTQIA+, constituída majoritariamente por pessoas da classe trabalhadora, o vazio é ocupado pelo neoliberalismo progressista, estendendo seu poder de atuação e esvaziando o sentido da coletividade inerente à comunidade LGBTQIA+, construindo e moldando o imaginário a acreditar que um/a representa todos/as/es. Não, evidentemente, não representa, porque a realidade social e material grita muito mais alto. O discurso de ódio, homofobia, transfobia e o perigo constante de morte a que as pessoas da comunidade LGBTQIA+ são submetidas cotidianamente é o resultado de uma sociedade capitalista.


Nesse sentido, entende-se que o neoliberalismo progressista não tem nenhum compromisso com a vida das pessoas, mas o seu único e verdadeiro compromisso é manter toda a estrutura social e econômica sem nenhuma alteração. Fica o seguinte ensinamento para a esquerda brasileira e itapuranguense em especial: Acolher, se mobilizar e defender os direitos da comunidade LGBTQIA+ é acreditar no princípio da dignidade humana, na luta da classe trabalhadora e na possibilidade de um outro modelo de sociedade centrado não mais no Capitalismo.


Nos parágrafos anteriores, foram apresentadas duas possibilidades de interpretação sobre o porquê do distanciamento da esquerda de algumas pautas. As hipóteses estiveram centradas na defesa da ordem liberal/burguesa e em uma falsa dicotomia entre luta de classes e luta por direitos humanos. Essas duas hipóteses devem ser levadas em consideração para entender o porquê do distanciamento da esquerda itapuranguense – partidos políticos, intelectuais e movimentos sociais - do primeiro encontro da comunidade LGBTQIA+. Porém, apesar dos fenômenos históricos e estruturais, considero importante apresentar uma outra hipótese com condições de explicar o distanciamento. A saber, o fenômeno da eleição municipal.


Nas últimas semanas, foi possível deparar com uma leitura, principalmente da esquerda partidária, centrada no cálculo político. Diante de uma reação violenta de uma parcela considerável da sociedade, partidos, pré-candidatos/as e outras pessoas importantes do campo progressista e democrático optaram por não participar ativamente do primeiro encontro da comunidade LGBTQIA+, pensando unicamente na eleição municipal. Imagina-se, dentro desse cálculo político, que um possível envolvimento com o encontro da comunidade poderia gerar um desgaste diante de um eleitorado mais conservador ou mesmo reacionário do município. Porém, a imagem do campo progressista já não é desgastada perante os setores conservadores e reacionários da sociedade? Um outro detalhe, é coerente, racional e humano fazer cálculo político e eleitoral quando os direitos, a dignidade humana e a vida das pessoas estão literalmente em risco?  


Enfim, são perguntas que ficam no horizonte, demandando tanto um tempo maior quanto a presença de outras pessoas participando do diálogo para serem respondidas. A esquerda itapuranguense poderia ter se saído enorme do primeiro encontro da comunidade LGBTQIA+, demonstrando disposição para defender os direitos de existência da classe trabalhadora e enfrentando todos os obstáculos que têm impossibilitado uma transformação efetiva da realidade social. No entanto, definitivamente não foi isso o que aconteceu. O campo progressista, democrático e a esquerda de uma forma em geral saíram literalmente derrotados, principalmente porque tiveram receio, medo de acolher e de respeitar o que há de mais elementar na vida humana. A saber, a própria vida humana. 


Entretanto, apesar do silêncio de alguns e do distanciamento de tantos outros, o primeiro encontro da comunidade LGBTQIA+ foi um momento histórico. Uma oportunidade de presenciar a capacidade de resistência de jovens ativistas, enfrentando com coragem e determinação os discursos de ódio e tantas outras formas de violência. O dia 28 de junho de 2024 ficará marcado como um momento histórico porque a cidade de Itapuranga ficou mais alegre, colorida e inclusiva com a presença da comunidade LGBTQIA+ ocupando os espaços públicos para celebrar a vida e para cultuar o direito de amar e ser amado/a. O amor, mais uma vez, demonstrou toda a sua capacidade revolucionária, apesar do silêncio de alguns e do distanciamento de tantos outros. 



Notas:


[1] Além de livros, ensaios e artigos versando sobre a morte da esquerda, Safatle tem participado ativamente do debate público, tocando neste e em outros temas inerentes. Sobre a morte da esquerda brasileira no tempo presente, recentemente o filósofo concedeu uma entrevista ao historiador Lindener Pareto, do Instituto Conhecimento Liberta. A entrevista pode ser acessada por meio do seguinte endereço: PROVOCAÇÃO HISTÓRICA - 29/05/24 - "A MORTE DA ESQUERDA" (youtube.com)

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