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A carne mais barata do mercado: Indignidade seletiva e a violência racial


Jéssica Meirelles Pereira

(Mestra em Ciências Sociais e Humanidades)


Em um stand de tiros um jovem negro é confrontado sobre o desenho de seu alvo, a silhueta de um cão. Um grupo de pessoas incomodadas o cercam exasperadas e exigem que ele retire o alvo, pois é inconcebível atirar na imagem de um cachorro. O rapaz espantado com a intervenção, conta-lhes sobre os cães de sua vizinhança que atacavam crianças, o que o teria influenciado na escolha do alvo, até porque achava muito pior usar um alvo em formato humano, como fizera os demais ali presentes.


Essa é a cena de um dos episódios da série americana Atlanta, dirigida por Donald Gloover, o mesmo responsável pelo impactante clipe This Is America, que teve milhões de visualizações e que denuncia a violência recaída sobre os negros nos Estados Unidos. Esse relato serve para ilustrar mais um dos tristes episódios que constituem a mortandade por homicídios de negros no Brasil e sobre a comoção seletiva.


Pedro Gonzaga de 19 anos foi assassinado dentro do supermercado Extra na cidade do Rio de Janeiro. O segurança Davi Ricardo Moreira o estrangulou até a morte, embora testemunhas apelassem contra o excesso de violência sobre o jovem.


No final do ano passado, em uma unidade do Carrefour, um segurança matou a pauladas um cão de rua, o ato de fato, vil, indignou uma grande parcela da população. A causa em prol dos direitos dos animais é muito importante e vem se expandindo no país, porém é preciso indagar, porque ocorre mais sensibilização com um cão do que com um outro ser humano?


A mesma força empática não se desenrolou com a morte de Pedro, nem com Jenifer Silene Gomes, de 11 anos, assassinada por policiais, também, no Rio, ou com Marcos Vinícius da Silva de 14 anos, morto na favela da Maré quando ia para a escola. A alegação de muitas pessoas, fortes opinantes em suas redes sociais, é de que diferentemente do cão “se morreu, provavelmente mereceu”. No caso do Extra, por exemplo, a administração do supermercado alegou que o segurança teria agido com legítima defesa em ação antifurto, mas o que se percebe no triste vídeo que circula pela rede, aos olhos de quem tem coragem de ver, é uma força bruta de alguém que queria verdadeiramente ser violento e não se defender.


Pedro não teve chances de justificativa nem de julgo, Pedro morreu. Mas muitos acreditam que uma morte tão covarde pode ser justificada, por um “provavelmente” ou por certezas absolutas. Mas a certeza absoluta que recaiu sobre ele é sua cor e a criminalização dessa. “Mas o segurança não agiu por causa da cor...”. Pedro, Jenifer e Marcos, eram negros. Segundo o Atlas da Violência, produzido pelo Ipea, um jovem negro tem 2,7 mais chances de ser assassinado que um jovem branco. É possível verificar, no mesmo documento, que mais de 70% das pessoas vítimas de homicídio são negras ou pardas.


Vivemos em um país onde o racismo também é institucional, praticado pelo Estado e pela polícia, onde o negro é sempre suspeito primário, envolvido em muitos casos de injustiça, onde se atira primeiro e pergunta depois. Afinal, quantos brancos você viu em semelhante situação?


Esses dados alarmam com violentas sacudidas do óbvio que a sociedade brasileira tenta ainda negar, mesmo depois de muitas gerações após a desmistificação da “democracia racial”, nega-se os desníveis sociais e raciais. Enquanto se apresenta uma indignidade seletiva sobre vítimas de violência e desigualdade de direitos, onde ser da mesma espécie nada vale diante de um ódio estruturado por um racismo ainda muito presente. “A carne mais barata do mercado” ainda “é a carne negra”.

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