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Codependência afetiva: Uma análise sociológica



Segundo Rocha, Rodrigues e Oliveira (2018), “O fenômeno da codependência se refere a uma síndrome emocional, digna de tratamento e que, apesar de ser uma terminologia relativamente nova, o fenômeno é conhecido há anos e aflige inúmeros relacionamentos disfuncionais, baseados, fundamentalmente, em precisar controlar o outro”. Um relacionamento disfuncional que envolve a codependência afetiva, geralmente possui por parte do indivíduo dependente, segundo Matarazzo(2003), a seguinte linha de raciocínio: “Eu tenho enormes vazios dentro de mim e escolho você como o meu salvador, alguém que vai compensar todos os danos que a vida me causou”. A idealização do outro como figura central de sua vida e sujeito indispensável para a felicidade do codependente, é uma das características mais marcantes do fenômeno, já que o indivíduo atribui ao outro demasiado poder de influência sobre suas próprias ações e emoções. De acordo com Rocha, Rodrigues e Oliveira (2018), “O codependente deixa de se escutar, de perceber o que quer em detrimento do outro que ama. O dependente afetivo só existe através da existência do outro que é razão da sua vida. Outro aspecto relevante é que o codependente têm hábitos e comportamentos autodestrutivos, que os mantêm presos a relacionamentos não gratificantes e o impedem de encontrar a felicidade na pessoa mais importante na sua vida: ele mesmo”, nesses casos, a vítima de codependência, deixa de viver para si e passa a viver para o outro, desconsiderando questões significativas na relação, como individualidade, liberdade e até mesmo a reciprocidade, fazendo com que sua autonomia se perca no relacionamento. Há, em casos assim, tentativas de controle sobre o(a) parceiro(a) e desprezo pela individualidade e pelas diferenças que são inevitáveis e necessárias em qualquer relação interpessoal.

“Quando a insegurança sobe a bordo, perde-se a confiança, a ponderação e a estabilidade da navegação. A deriva, a frágil balsa do relacionamento oscila entre as duas rochas nas quais muitas parceiras se esbarram: a submissão e o poder absolutos, a aceitação humilde e a conquista arrogante, destruindo a própria autonomia e sufocando a do parceiro”(Bauman,2004), desfazendo-se assim, da liberdade e da fluidez, pertinentes nas relações amorosas contemporâneas. A codependência dentro do relacionamento, geralmente resulta em atitudes baseadas na instabilidade emocional do indivíduo, que consequentemente torna-se inseguro, medroso, possessivo, etc., muitas vezes sem perceber, afetando a si mesmo e ao conjugue. Norwood (2005), ressalta que “quando amar significa sofrer estamos amando demais”, efetivamente, temos mulheres e homens que amam demais. A exagerada romantização do sofrimento fruto do amor romântico, gera no imaginário social a ideia absurda de que para amar deve-se sofrer, submeter-se a tudo o que for necessário para a manutenção da relação e abrir mão de sua liberdade esperando que o outro faça o mesmo, não se trata, portanto do amor como sentimento, mas sim de uma inversão do conceito, resultando em relações disfuncionais.

Contudo, o amor-próprio, a aceitação, o autorrespeito, assim como o autocuidado, são fundamentais no processo de superação da codependência afetiva, olhar para si mesmo(a) como prioridade é fundamental, em qualquer que seja a situação. Entretanto, este não se trata de um artigo de autoajuda, a intenção não é discorrer sobre a significativa importância da autoestima, aceitação, etc., o presente texto tem como objetivo um análise fracionária sociológica e cultural do fenômeno, buscando compreender através dos papéis sociais atribuídos aos gêneros, frutos do machismo estrutural e do patriarcalismo/falocentrismo, como a codependência afetiva aflige mulheres e homens, sendo a primeira categoria significativamente mais afetada em detrimento da segunda.

A codependência é um fenômeno inerente ao gênero, entretanto, sua origem e o modo como ele se manifesta em homens e mulheres tem distinções significativas dentro de uma sociedade onde o machismo estrutural se faz presente, afetando contundentemente ambas as categorias de gênero, com ênfase no feminino. Segundo Saffioti(2004), os homens são condicionados a apresentarem o mínimo de emoções possíveis, a mostrarem-se corajosos, fortes, provedores do lar, sem o direito de falhar, especialmente com relação ao sexo e se tiverem certo bom gosto e cuidados com o lar, tem sua masculinidade colocada em dúvida, sendo essas algumas das desvantagens que o machismo proporciona aos homens. Já as mulheres “são socializadas para desenvolver comportamentos dóceis, cordatos, apaziguadores” Saffioti(2004), características divergentes das atribuídas ao gênero masculino, que exerce um papel de dominação. Ainda segundo a socióloga, as mulheres são treinadas para buscar aprovação e sentir culpa por tudo o que acontece de errado, mesmo sabendo que a responsabilidade não lhe pertence. Temos um direcionamento de atribuições que legitimam a dominação masculina e consequente exploração das mulheres. Ao relacionar a codependência afetiva com a questão de gênero e consequente superioridade atribuída ao homem, é destacada não só a vulnerabilidade da mulher diante do fenômeno, já que ela é historicamente marginalizada e vista como submissa ao mesmo, como também a distinção significativa nas atitudes individuais que resultam da síndrome emocional, como veremos a seguir.

O homem codependente, além das atitudes relacionadas à codependência afetiva, a saber, a veneração da pessoa desejada, a defesa da impossibilidade de uma vida feliz sem a presença da mesma, a negação da individualidade, sentimento de posse e tentativa de controle sob a vida alheia, ao sentir-se inseguro, com medo da perca ou mesmo em decorrência dela, como nos casos em que há o rompimento do relacionamento, geralmente tem como principal característica a violência, devido ao incentivo social para a agressividade masculina, como forma de demonstração de virilidade, além da agressividade normalmente resultante da frustração e sentimento de impotência. Ainda que não haja violência física, atitudes agressivas são características marcantes nesses casos, como o envio de mensagens com teor agressivo, ofensas direcionadas à (ex)companheira, ameaças de agressão contra ela e até contra si mesmo, etc., ou seja, mesmo que a violência física não ocorra, a violência psíquica e moral se fazem presentes, podendo desencadear em consequências tão ou mais significativas que a primeira.

Não obstante, a mulher refém de paradigmas sexistas e cercada por diversos padrões de comportamento atribuídos a ela, quando não se liberta das amarras sociais que lhe são impostas, vive em um processo de autoanulação, onde ela própria se subordina, inconscientemente, ao regime de dominação-exploração, a situação se agrava ainda mais quando a codependência afetiva se faz presente, pois juntamente com as características típicas do fenômeno, soma-se o peso dos já mencionados padrões, intensificando os impactos da dependência. A necessidade do outro em sua vida, faz com que, por vezes, a mulher codependente se mantenha em relações tóxicas, geralmente desprovidas de reciprocidade, onde individualidade e liberdade não são respeitadas, mas que é recompensada pela mera permanência do ser desejado em sua vida. Saffioti(2004), ressalta que “talvez pelo fato de serem encarregadas da educação dos filhos, as mulheres, em geral, sejam tão onipotentes, julgam-se capazes de mudar o companheiro, quando a rigor, ninguém muda outrem”, neste trecho a noção da culpabilização feminina é novamente destacada, juntamente com seu caráter protetor, de cuidado para com o outro, reproduzindo a ideia de que a responsabilidade pelas ações do parceiro são da mulher, sendo ela também a responsável pela manutenção da relação e culpada caso algo não dê certo. Entretanto, diferentemente do homem, a mulher não costuma apresentar atitudes violentas (salvo exceções), em decorrência de sua sociabilização para a cordialidade e passividade, enquanto a codependência masculina, muitas vezes resulta em violência podendo chegar até mesmo ao feminicídio.

É fundamental nos atentarmos para os reflexos culturais que vivenciamos cotidianamente, muitas vezes sem perceber, como são os casos de letras de músicas, tramas de filmes, enredos de novelas, etc., que reproduzem, naturalizam e até mesmo romantizam fenômenos tão prejudiciais como a codependência afetiva. A banalização de características típicas da codependência e a tentativa de atribuir-lhes um caráter cômico, é visível também no espaço virtual, em forma de memes, quando atribuem à mulher, adjetivos como louca, surtada, paranoica, histérica, etc., associando a insegurança e ciúme feminino a termos pejorativos e romantizando, em contrapartida, as mesmas características nos homens, com a utilização de expressões como “meu pedacinho de stress”. Segundo Riso(2010), “vivemos com a dependência afetiva à nossa volta, a aceitamos, a permitimos e patrocinamos”, é necessária uma contundente conscientização social para desnudar esses conceitos, compreender suas origens, suas árduas consequências e superar tais paradigmas.


Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

MATARAZZO, Maria. Coragem para amar. Rio de Janeiro. Record, 2003.

NORWOOD, Robin. Mulheres que amam demais. Tradução de Cristiane Perez Ribeiro. 32Ed. São Paulo: Arx,2005.

RISO, Walter. Amar ou depender? Como superar a dependência afetiva e fazer do amor uma experiência plena e saudável. Porto Alegre, RS:L&M, 2010.

Rocha, D C C. RODRIGUES, Rhayana F. B.. Tabatha Bezerra Oliveira, Codependência afetiva: Quando o amor se torna um vício. Revista Científica Semana Acadêmica.

Fortaleza, ano MMXVIII, Nº. 000143, 20/11/2018.

SAFFIOTI, Heleieth I.B. Gênero, patriarcado, violência. 1ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

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