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Entre xícaras de café e frustrações


Convivendo com uma tarde ensolarada, o professor preparava a aula da semana, acompanhado por uma quente e grande xícara de café. O café oferecia a energia necessária para continuar lendo o artigo, ao mesmo tempo em que contribuía para aumentar o calor do ambiente. Porém, sem o líquido, o cansaço seria insuportável e o artigo se tornaria mais complexo. Durante a leitura, com uma envelhecida caneta azul que borrava insistentemente o seu antebraço, anotava os temas, conceitos e categorias mais pertinentes. Nesse momento, pensamentos divergentes apareceram no horizonte.  


Cansado e dopado de café, pensava no time do coração, fazia as contas se o restante do salário seria suficiente para chegar ao fim do mês, lembrava-se do inglês sofrível, recebia notificações de um aplicativo de mensagens no computador, tentando ignorar solenemente o conteúdo. Porém, de esguelha, identificava que o teor das mensagens versava sobre os mais variados assuntos. O aplicativo insistia, o calor não arrefecia e os pensamentos divergentes, finalmente, davam lugar a uma pueril razão: a leitura do artigo precisava ser finalizada.

 

Antes da retomada, depois de ter silenciado o aplicativo, o professor levantou-se da sua desconfortável cadeira para encher, por não sei lá quantas vezes, sua xícara de café. Seus lábios estavam sedentos por sentir aquele gosto descendo rapidamente pela garganta. Doce, ou melhor, triste ilusão. O café, diante de tantas investidas, tinha acabado. Havia prometido que diminuiria o consumo porque, afinal, suas noites estavam sendo intranquilas. Ainda não tinha passado por uma metamorfose, mas imaginava que a qualquer momento acordaria transformado em algum invertebrado. Pelo menos, quem sabe seria um inseto não odiado pelos humanos.

 

Pensou seriamente na feitura de um novo, delicioso e quente café. Olhou para o relógio, espantou-se com o horário. Enquanto decidia se colocava o pó para ferver ou não, o telefone tocou. Assustado e um pouco indignado, imaginando quem ainda tinha o hábito de fazer ligação atualmente, atendeu com uma certa hesitação. Do outro lado, uma amiga, argumentando que tinha enviado mensagens há mais de duas horas e não tinha obtido resposta. No instante, lembrou-se do silenciamento do aplicativo de mensagens. A ligação não estava voltada para conversar sobre o cotidiano, relembrar velhas e boas histórias ou mesmo para perguntar se a família estava bem. Na semana anterior, o professor tinha feito um compromisso de entregar um artigo. Diante da ligação, não é difícil imaginar que o combinado tinha ido para as cucuias.

 

Suando frio, mesmo diante do insuportável calor, apresentando uma justificativa que não convenceria sequer a sua mãe, o professor explicou, argumentou - não convenceu - e se comprometeu: na próxima semana o artigo estaria em mãos. Ou melhor, estaria no e-mail ou em qualquer outro aplicativo de mensagens. Começou a pensar na produção, incomodado com o fato de que mal havia traçado alguns parágrafos. Deixou os pensamentos insanos para depois, porque subitamente se recordou de um outro artigo. Justamente aquele que, algumas horas antes, estava lendo para a aula da semana. Retomou a leitura, esqueceu-se do café, pegou a caneta que insistia em borrar tanto o seu antebraço quanto as folhas em branco e continuou, continuou, continuou...


Por um instante, pensou no sonho frustrado, imaginando que poderia ter sido um mediano jogador de futebol. Poderia, se os deuses tivessem sido mais bondosos. Quem sabe, com a valiosa ajuda sobrenatural, teria se tornado um profissional da pelota e levado o time do coração ao sonhado acesso à elite do futebol. Ainda vislumbrava uma profissionalização, mas os quase quarenta anos contrariavam os seus pensamentos. Acordado por um insistente e agudo latido de cachorro, parecendo estar muito distante, continuou lendo o artigo.

 

Convivendo com pensamentos divergentes e algumas interrupções, aproximava-se das considerações finais. O dia, assim como todos os outros, não tinha sido nada fácil. Quando iniciou, acreditava que teria um tempo para ler, anotar e depois escrever um ensaio. O ensaio seria lido no final da aula. Olhou para o relógio do lado direito inferior da tela do computador: 18 horas. Momento de tomar um banho, se arrumar porque às 19 horas estaria no local de trabalho.


Antes, abriu os dois e-mails para verificar se tinha recebido algo de importante. Nada de muito relevante, além de newsletters de jornais e insistentes convites de publicação. Respirou aliviado. Diante da sensação agradável, desativou o aplicativo e verificou que havia muitas mensagens nos grupos, algumas outras de amigos e umas duas ou três de contatos não salvos. O tempo conspirava contra e o aplicativo teria que ficar para depois. Embora não fosse religioso, pediu aos céus para que as mensagens não tratassem de assuntos urgentes.

 

Durante o banho, tentou inutilmente retirar as marcas da caneta do antebraço. Esfregou, trocou de bucha e nada. As marcas recusavam-se a sair daquele lugar. Alertado pelo tempo excessivo debaixo do chuveiro, sentiu o ardor do shampoo anticaspa nos olhos. Respirou fundo, balbuciou um palavrão diante do desconforto e saiu apressadamente do banheiro. Olhou no espelho e sentiu os efeitos do tempo nas expressões cansadas do rosto. Talvez, naquele momento, pela primeira vez, as esperanças de se tornar um jogador profissional de futebol tenham sido lançadas ao espaço.  


Lembrou-se do espaço, tema da aula. Enquanto se arrumava, ouvia atentamente o noticiário, apresentando os assuntos mais importantes da política nacional. Entre os gritos eufóricos dos adolescentes jogando videogame e a indignação dos jornalistas analisando um projeto de anistia para os golpistas do 8 de janeiro, o professor se preparava para mais uma aula. Apesar da ardência nos olhos, amenizada com doses de colírio, sentia-se revigorado, pronto, animado e entusiasmado com a possibilidade de reencontrar a turma de alunos/as.

 

Deixou sua casa faltando 15 minutos para as 19 horas. Chegou ao local de trabalho sem sustos, alegre e entusiasmado para mais uma noite. Quando se deslocava para a sala de aula, identificou uma quantidade considerável de alunos/as ao redor de uma vendedora ambulante, comendo apressadamente salgados e outras quitandas. Entre um gole de Coca-Cola e uma mordida no alimento, a fome saciava-se depois de um dia exaustivo nos trabalhos precarizados oferecidos pela burguesia local. Sentiu-se comovido com a realidade dos estudantes e vislumbrou na educação pública uma oportunidade, talvez a única oportunidade, de terem uma condição de vida menos sofrível.

 

Esperou pacientemente a inserção dos estudantes na sala de aula. Alguns ainda estavam devorando os últimos resquícios dos salgados, balançando inutilmente a lata de refrigerante na esperança de mais uma gota. Agradeceu a presença de todos e de todas, retirou da mochila as anotações escritas sobre o artigo. Infelizmente, não tinha conseguido escrever o ensaio conforme o planejado. Depois da introdução, convidou os alunos e as alunas para apresentarem suas considerações. Entre uma observação aqui e outra acolá, frequentemente interrompida por conversas paralelas, por uma gargalhada não planejada, um barulho insistente de alguma rede social enviando mensagens sem parar, um outro abaixando desconfiadamente o volume do celular para ouvir um áudio qualquer, mesclando-se com aquele clássico barulhinho de um serviço de streaming para acompanhar um episódio atrasado, a aula seguia a sua normalidade.

 

O artigo, que nunca deixou de ser difícil, entre gargalhadas, conversas paralelas, redes sociais e considerações importantes dos e das estudantes, foi sendo descortinado. Passando por uma miríade de pensamentos: alegria diante de uma observação e tristeza perante a dificuldade de se desvencilharem da tecnologia da atenção, o mesmo relógio de tantos outros momentos sinalizava para a última meia hora. O professor olhava para as folhas borradas e identificava que, entre as anotações, partes importantes sequer tinham sido apresentadas. Apressava-se diante do tempo efêmero, identificando a inquietude dos e das estudantes.


Entre soluços e sobressaltos, alterando um pouco mais a voz para dar um último recado, recebido de maneira não muito entusiasmada, o professor finalizou a aula quinze minutos depois do combinado. Pacientemente esperou a retirada da turma, conversando com uma estudante aqui, dando atenção a um outro que falava sobre um assunto aleatório no fundo da sala. Sem voz, com a garganta incomodando, pegou o recipiente de água para amenizar o desconforto. Infelizmente, a garrafa estava seca. Nesse momento, lembrou-se da garrafa de café que, horas antes, tinha ficado na mesma situação. Porém, diferentemente da experiência anterior, não lamentou aquela trágica situação.

 

Poucos minutos depois estaria - estava - em casa. Bebeu um copo de água, comeu um lanche qualquer enquanto acompanhava o segundo tempo de um jogo de futebol. Lembrou-se das injustiças dos deuses. Olhou para o celular e se assustou com a quantidade de mensagens existentes nos grupos. Resolveu, de súbito, apagar todas. Entre o gol do time peruano e os grupos com as mensagens apagadas, sentiu uma sensação reconfortante. Talvez, tirando a observação feita por uma acadêmica durante a aula, aquela tenha sido a melhor sensação do dia.

 

Sentindo o cansaço, ainda pensando sobre o porquê de não ter se tornado um mediano jogador de futebol, o frustrado professor deitou-se com a esperança de ter uma reconfortante noite de sono. Entre o desconforto do travesseiro e os latidos do cachorro, dessa vez parecendo estar mais próximo, o sono, que parecia evidente, começava a se distanciar. Entre pensamentos coerentes e tantos outros inexplicáveis, voltou a pensar na aula, nos assuntos apresentados e naqueles tantos outros que ficaram de fora. Elaborou mentalmente algumas metodologias, acreditando que poderiam ser muito mais atraentes do que as redes sociais, prometendo colocá-las em prática no próximo encontro.  


Sentindo-se contente com a solução, orgulhando-se de tamanha inventividade, de maneira arrogante, virou-se de lado, mudou a posição do travesseiro, continuou ouvindo os latidos do cachorro e, pouco tempo depois, estaria pagando a dívida com a garrafa de café.

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