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Fronteira


No extremo limite da experiencia humana, a fronteira tem sido a representação daquilo que poderíamos chamar de “novo”. Esse algo “novo”, “imprevisível” e “inconsistente” da fronteira, tem se revelado a-histórico. A mais notável e evidente representação da fronteira como elemento a-histórico é revelada por meio de seu conteúdo geográfico, quando ao homem foi lhe imputado a tarefa de romper os limites territoriais e naturais inerentes à sua sobrevivência.


No curso da história da humanidade, a fronteira esteve quase que exclusivamente circunscrita pelos aspectos meramente geográficos. Nesse processo, outras esferas do cotidiano dos homens foram sendo gradativamente incorporadas à abordagem da fronteira, aos quais, a questão religiosa, política, social, econômica e cultural.


Na atual conjuntura, poderíamos afirmar com convicção que a fronteira se configura essencialmente como sendo o limite da expansão do capital pelos lugares e, ao mesmo tempo, como movimento dialético envolvendo as situações de conflito e suas narrativas ideológicos genuinamente antagônicas. Essa definição sintética da fronteira, ou da “situação de fronteira”, como bem define José de Souza Martins, incorpora elementos aquém das teorias geográficas e econômicas, recebendo estímulos práticos mais vigorosos de aspectos sociológicos e antropologicamente sensíveis aos processos sociais especificamente dados no limite da fronteira.


A dimensão sociológica e antropológica que o autor enfatiza, enriquece o debate da fronteira, pois desnuda aspectos antes negligenciados por visões e concepções voltadas tão somente às análises clivadas pelo determinismo econômico e geográfico. Não se trata de negar a importância de tais abordagens (elementos do econômico e do geográfico) para o entendimento da fronteira, especialmente no que ela tem de mais determinante na sua forma e estrutura aparentemente concreta: o capital. Se busca pensar a fronteira no que ela não tem de aparente e de imediato: as relações de conflito social e étnico, sendo um lugar genuinamente da alteridade, do encontro e desencontro com o outro.


A fronteira apresenta duas formas essencialmente diversas, mas que se complementam mutualmente. Ambas, tanto a frente pioneira quanto a frente de expansão, apresentam distintas concepções e sentidos teóricos, assim como práticos, fazendo, portanto, partes de um mesmo processo histórico-social: o tempo e o espaço da fronteira. Neste contexto, a frente pioneira estaria voltada à reprodução ampliada do capital, induzida por elementos da modernização e da integração espacial e social na definição de um determinado território. A frente de expansão, a seu turno, envolveria, distintamente da frente pioneira, aspectos majoritariamente antropológicos, resultado do contato de povos, comunidades tradicionais, camponeses e indígenas, entre outros. Nesse processo, estariam envolvidas uma gama de relações sociais e antropológicas dadas ao particular movimento e contato desses diferentes povos e sujeitos, que por sua vez escapariam às relações monetárias e capitalistas que determinam, em oposição, a frente pioneira.


A busca pela compreensão da fronteira nos dois sentidos aqui apresentados pelo autor, tanto na ótica da frente pioneira quanto na perspectiva da frente de expansão, mostra a complexidade e a contraditória diversidade da fronteira. Como já assinalado anteriormente, a frente pioneira e a frente de expansão são elementos do mesmo processo histórico-social, estando, porém, correlacionados, mesmo apresentando suas especificidades. Na quase invisível linha que separa a frente pioneira da frente de expansão, estão os sujeitos e povos incorporados ao ciclo da reprodução do capital e mesmo aqueles fora dele, como camponeses, posseiros, comunidades indígenas e rurais, assalariados, indígenas, entre outros. No limite estipulado pela frente pioneira, onde se encontram os agentes do capital e da modernização (estado, empresas, capitalistas, comerciantes fazendeiros, etc.), está por de trás toda uma rede de interações sociais e antropológicas que também define os limites e o movimento na/da fronteira.


A análise da fronteira perde seu valor quando trabalhadas em conjunto e numa totalidade sem sentido prático, sem considerar, desse modo, suas especificidades, muito particularmente quando se coloca em discussão os elementos da frente pioneira e da frente de expansão. Um dos aspectos a considerar nesse processo é a diversidade de tempos que compõe todo quadro de relações no limite da fronteira. Não se trata apenas do tempo do capital e dos agentes da modernização. Os difusos e amplos contextos sociais e antropológicos evidenciam que o tempo na situação de fronteira é moldado pelas formas com que o conflito e a relação com o outro é, de fato, realizada. Como exemplo desses difusos processos o autor menciona a peonagem e a escravidão por dividas; relações estas que se operam próximas e ao mesmo tempo distantes da lógica do capital moderno e sofisticado.


Diante o exposto, o autor entende que a frente de expansão não compreende, em sua totalidade, elementos que se possam afirmar essencialmente capitalistas. Neste movimento (frente de expansão), as relações sociais e de produção são predominantemente não capitalistas, indicando, assim, seu caráter insuficiente dos mecanismos de reprodução do capital no extremo limite da fronteira. A título de exemplo, os movimentos migratórios, como característica e uma fase da frente de expansão, não representam, necessariamente, uma lógica estritamente demográfica de implicações capitalistas. Claro que ela a retém e a tem como processo total. Entretanto, há, no limite da situação de fronteira, movimentos e migrações que se operam espontaneamente, inerente as forças propriamente ditas do capital moderno. É o caso das migrações de homens e mulheres da região Nordeste para a região Amazônica, tendo como razão motivadora aspectos místicos e milenaristas.


Evidentemente que as migrações espontâneas fazem parte de processos histórico-sociais específicos, inclusive compondo o próprio movimento de reprodução do capital pelos lugares. A ideia que o autor sustenta a respeito da dicotômica relação entre frente de expansão e frente pioneira (ou vice-versa) é trasposta por uma abordagem que considera coexistências e interferências mútuas de ambos os processos. De um lado não se pode negar o elemento da reprodução ampliada do capital na situação e no limite da fronteira, caracterizado pela frente pioneira. De outro, não se deve negligenciar, especialmente sob a ótica sociológica e antropológica, as ingerências da frente de expansão, justamente aqueles processos sociais que escapam ao determinismo econômico e político.


Entender a fronteira, no seu limite e no seu extremo, é compreender sua dimensão humana. Assim, “a fronteira aparece frequentemente como limite do humano”. Ela é (a fronteira), concepção do humano. Sua dimensão econômica é aí secundária. No âmbito sociológico e antropológico, a fronteira e suas variáveis interpretativas deve considerar o elemento da alteridade, no limite da relação que se cria e se reinventa cotidianamente entre o eu e outro, do outro com o eu, para além das relações meramente objetivas.


Texto base:

MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2009.

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