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História, Educação e os Desafios da Desumanização*



A história se faz a si mesma de tal maneira que o resultado final surge dos conflitos entre muitas vontades individuais, que se tornaram o que são por uma série de condições específicas de vida. Assim, há numerosas forças que se cruzam, um paralelogramo infinito de forças que dão origem a uma resultante - o evento histórico. (Friedrich Engels).

Evento histórico. O destaque na afirmativa de um dos expoentes das teses que se consolidou como marxismo, levando-nos a compreender que a história dos humanos precisa ser entendida como um processo histórico. Processo este não retilíneo e contínuo, mas de intensas contradições – presente na luta de classes. Contradições que se fazem presentes, inclusive na produção do conhecimento histórico quando vivemos um processo de desumanização na condução das análises propostas. Tal como experienciamos em nossos dias, basta olharmos a condição de desumanização. Mas nada é feito ao acaso, tudo se constitui com intenções e precisa ser analisado. Daí, minha fala sobre história, educação e os desafios da desumanização aparecem como aforismos que se tornam um processo de manifestação.


Aliás, um manifesto que nos convida a pensar na importância de vencermos os desafios que nos cercam em relação ao processo de desumanização que se faz presente em nossa contemporaneidade. Talvez pareça um lamento, mas não. Estamos fazendo memória de um passado de resistência ligada aos povos originários que choram, agradecem e evocam o espírito para protegê-los quando necessitam, por exemplo, derrubar uma árvore ou parte da mata para fazer uma canoa ou um roçado para plantar os frutos da alimentação.


Sabedores que a história é feita pelos humanos em sua condição de vivência e experiência com os seus semelhantes e com a natureza, através de suas experiências, como nos ensinou E. P Thompson (1981). Daí a certeza de que em todos as ações e vontades estão dispostos um processo de aprendizado que convencionamos chamar de educação, Paulo Freire (2001) está presente na assertiva.


E a certeza que temos é a de que precisamos lutar, resistir e combater o processo de desumanização proposto pelo modelo capitalista atual que convencionamos chamar de neoliberalismo. Modelo que usa de categorias do cotidiano para falar em liberdade, igualdade, fraternidade e democracia, nascidos com o “espírito das luzes”. O que vimos são inversões que foram sendo produzidas, desde o Iluminismo e que se tornaram verdades para essa sociedade ocidental que deseja manter o processo de conquista do outro. Tudo dá a entender que os corpos devem ser “vigiados e punidos”, como afirma Michel Foucault (2014).


Mas, enfim, vou demonstrar a inspiração do velho Karl Marx (2017), em sua famosa frase de encerramento do Manifesto do Partido Comunista: “Proletários de todos os países, uni-vos!”. Ao passo que vou chamar a atenção para dizer: estudantes, professores e comunidade acadêmica devemos mantermo-nos unidos, com essa defesa da universidade pública, gratuita e com a qualidade que todos merecem. Enfim, devemos manifestar para fazer com que nossas ações sejam para:


1. Refletir sobre a importância do historiador em seu dia. Tudo para que possamos dar e fazer a devida importância para com o profissional da história. Que saibamos compreender a importância dos saberes produzidos pelos historiadores (as) e que em nossas pesquisas e análises consigamos fazer um processo de construção do conhecimento que possa levar a formar um mundo de amizade e humanidade, conseguindo conviver com os diferentes e as diferenças sempre. Que não vejamos o povo como bestializado, mas na certeza de que a história acontece e se faz por todos sujeitos sociais, lembrando de José Murilo de Carvalho (1987).


2. Possibilitar um processo de educação humanizadora e da cultura de paz para revermos os nossos conceitos e preconceitos contra esse processo de desumanização existente advindos com a lógica e verdades do mundo neoliberal. Uma educação que valorize as nossas atividades acadêmicas e que os profissionais da educação tenham a sua garantia de cátedra para ensinar, aprender e ensinar com a liberdade que tanto se propala na sociedade que deseja todos iguais. Lembremos de Carlos Rodrigues Brandão (2015).


3. Garantir um mundo melhor para todos nós, com respeito à comunidade de vida, nosso planeta terra e que as nossas necessidades mais prementes sejam consubstanciadas com o processo de reutilização e respeito ao meio ambiente onde estão os homens, animais, os vegetais e os diferentes biomas existentes. Um mundo que seja para todos, não somente para os desígnios e desejos do capital e suas nuances da destruição.


4. Transformar o mundo odioso das guerras e perceber que as disputas por áreas de influências estão (re)colonizando o mundo por algumas nações a partir de seus interesses. E que sejamos capazes de construir um processo dialógico para que possamos conviver e saber conviver com as diferenças culturais, sem, contudo, fazer com que alguns territórios e regiões do planeta se tornem espaços imperialistas que destroem os humanos e suas diversidades, como ocorrido nas Américas, África e Oriente. Sejamos construtores de uma comunidade de paz. Aqui vale os estudos de David Harvey (2014) sobre as origens do neoliberalismo.


5. Fazer com que a história e a historicidade produzidas consigam trazer para o centro do debate um processo histórico que faça com que as experiências humanas se tornem partes destas narrativas históricas, não deixando excluídas ou silenciadas as histórias daqueles que vivem e fazem a história da vida cotidiana. Quando se vai narrar alguns destes processos continuamos a presenciar a história dos eventos, datas e nomes, como o ocorrido em nosso estado de Goiás, verde e plano com a tentativa de dar deidade ao Anhanguera como sendo o construtor do Goiás. A nossa ciência histórica precisa rever estes conceitos que têm relação com os poderes ou o poder. Lembremos aqui dos debates promovidos pela ANPUH Goiás acerca de tal temática.


6. Dar respostas para um ensino de história que consiga colocar no centro do debate os humanos. Capazes de combater o processo de desumanização em curso com as teses fascistizantes que se fazem presentes em nosso tempo e que não desaparecerão, infelizmente, mas podemos fazer com que as mesmas sejam combatidas com resiliência e capacidade argumentativa na defesa do construto de uma sociedade democrática para todos e que se constrói a cada dia. Rejeitar as teses fascistas sempre, nossa união sempre, ninguém largando a mão de ninguém. Estudos de Francisco Carlos Teixeira (2000) são essenciais.


7. Fortalecer as atividades dos cursos de formação dos profissionais da história, tanto para a docência quanto para a pesquisa. Tudo no sentido de demonstrar que a nossa força se faz com profissionais bem formados para que possamos fazer do ofício uma atividade que gere pesquisas e leituras no sentido de ler criticamente os conceitos e os processos históricos humanos.


8. Garantir um processo de inclusão com aumento de investimento público em bolsas de estudos para que os acadêmicos que estão em formação em nosso curso de história tenham a tranquilidade de uma formação integral aliando ensino, pesquisa e extensão como parte do processo de sua formação como profissional da história.


9. Criar um ambiente acadêmico que seja carregado de experiência com um processo formativo cotidiano mediado pelos professores (as), no sentido de garantir as correções salariais, espaços completos para o universo da pesquisa, melhorar a conectividade na atividade laboral e que possamos criar uma rede de pesquisadores da história da UEG, possibilitando fazer conexão e parcerias com outras Instituições de Ensino nacionais e internacionais.


10. Demonstrar que a carreira docente possa ser um instrumento para fazer “criar asas e não gaiolas”, como nos ensinou Rubem Alves (2009), fazendo com que tenhamos a valorização dos educadores em todos os níveis de ensino e tenhamos instrumentos jurídicos, sociais e políticos para combater aqueles que desejam uma educação positivista e negacionista. Como projetos de desumanização em curso, destaca-se o projeto “escola sem partido”. E que reafirmamos, tem partido e ideologia muito bem arquitetados.

Depois de intentar fazer um manifesto, mais um protesto, permitam-me falar um pouco da minha trajetória como pesquisador, pois tudo o que busquei provocar até a presente exposição tem a ver com a minha formação como historiador. O meu objeto de estudo diz respeito aos movimentos sociais no campo, não somente uma história agrária, como alguns desejam, mas estou convencido de que as historicidades que tento produzir estão demonstrando a necessidade de ficar atento para buscarmos perceber quem são os sujeitos da história e como são silenciados, excluídos e negligenciados por algumas destas escrituras.


E pensar um pouco dessa trajetória nos remete ao dia do historiador, 19 de agosto, tema de nossa aula inaugural do segundo semestre de 2023. Quando me fez lembrar que também temos Heródoto como pai da história e Clio como a deusa da história. Evidentemente que, inspirados nestas duas figuras, nos debates historiográficos e na lide com o meu objeto de pesquisa – os homens e mulheres que vivem no/do campo é que proporcionam aprendizados que são capazes de me levar a compreender a importância de figuras, que parece de linguagem ou retórica, como Heródoto, Clio e o Dia do Historiador, mas não, são parte de um processo formativo que está na minha compreensão e estudo dos sujeitos sociais que vivem na territorialidade que resolvemos chamar de campo.


Para meus estudos estes sujeitos foram vistos como sendo de ação, capazes de se organizarem, com sentido, com gosto e jeito de ser. Estão imbuídos em um processo de formação social que sempre não os viam como sujeitos, eram bestializados, reproduzindo muitos conceitos e preconceitos. Certeza temos de que não estavam isolados de um processo hegemônico de sociedade. Daí, entender a luta dos camponeses não os vendo como sendo produtores de sua história somente porque estiveram ligados a um sindicato, associação, igreja e estado. Aqui os aforismos do “termo ausente”, apreendido com as leituras e estudos de E. P. Thompson (1981), me ajudaram no processo de compreender a história como um processo formativo – percebendo que a educação é parte da luta contra a desumanização que se fez e ainda se faz, com os movimentos de luta pela terra em nosso Brasil.


Processo de resistência que se fez e continua presente na “elite do atraso”, como afirma Jessé Sousa (2017). Mesmo assim, a participação ativa dos homens, mulheres e crianças no/do campo se fazem ecoar por todos os rincões brasileiros. Daí, a certeza de que ao longo da História do Brasil encontramos inúmeros eventos que podem demonstrar como essa luta pela terra foi e continua sendo parte da experiência dos camponeses nas mais diversas regiões. Um exemplo: assistimos um processo de retirada do homem do campo, com o êxodo rural, que se intensificou a partir dos anos de 1970. Configuração que se fez sentir na concentração da terra iniciada a partir da Lei de Terras de 1850, demonstrando que as vivências do presente estão mediatizadas com um “passado cheio de agoras”, como nos assevera Walter Benjamin (1994).


A luta pela terra sempre foi uma constante na vida dos camponeses, como demonstrei em recente artigo publicado e apresentado durante o estágio pós-doutoral, encerrado no mês de maio de 2023, no PPGH da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Assim, constatei ao revisitar as minhas fontes que os espaços da luta pela terra não se resumiram aos enfrentamentos para na terra permanecer ou conquistá-la. Mas a constatação é que os camponeses tiveram que se reinventar sempre, pois a luta pela terra esteve ligada à educação, à saúde, à cultura, enfim, aos direitos humanos, como temos melhor clareza hoje.


Enfim, conclui-se com uma afirmativa da epígrafe que iniciei minhas palavras retiradas de Engels, ao afirmar que os conflitos de interesses divergentes fazem com que o motor da história seja acionado. Para dar luz ao processo histórico de muitas lutas e resistências dos homens e mulheres do campo, trago um fato bem recente acontecido em nosso Goiás verde e plano. Em reportagem do Jornal Opção, datado de 02 de maio de 2023, ao relatar em audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, Saulo Reis, da Comissão Pastoral da Terra – Campo Unitário de Goiás, denunciou que:


[..] o aumento da violência contra lideranças de movimentos sociais e relatos de pistolagem em várias regiões do estado. Ele afirmou que “desde o semestre passado, a gente tem se deparado com o aumento da violência de forma assustadora”. Segundo o representante, essa violência é praticada tanto por fazendeiros e suas contratações de empresas privadas que agem como jagunços, quanto por “alguns funcionários das fazendas”. Reis destacou casos ocorridos em municípios como Jussara e Ipameri, onde a Política Militar teria destruído barracos e lares de famílias acampadas. Ele também mencionou a perseguição e monitoramento de lideranças de movimentos sociais pela polícia desde 2021. Para finalizar, o representante da CPT reforçou a importância de garantir a segurança das famílias que lutam pelo direito à terra, conforme previsto na Constituição.

A história, educação e os desafios da desumanização passam por nosso papel de historiadores, estudantes, militância e mobilização para com os nossos sonhos e desejos de uma sociedade dos diferentes, das diferenças e que sejamos capazes de superar a sociedade do atraso que vivemos. Que consigamos romper com a sociedade que nos tenta vigiar e punir sempre, lembrando de Michael Foucault (2014). Educação que transforma sempre!



Notas:


*Conferência apresentada na aula inaugural do Curso de História do Câmpus Cora Coralina, Universidade Estadual de Goiás. A aula inaugural, ocorrida no dia 18 de agosto de 2023, esteve relacionada às comemorações do dia do historiador e da historiadora.



Bibliografia


ALVES, Rubem. Por uma Educação romântica. 8. ed. Campinas: Papirus, 2009. p. 29-32.


BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In.: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.


BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Nós os humanos: do mundo à vida, da vida à cultura. São Paulo: Cortez, 2015.


CARVALHO, José Murilo. Os bestializados – o Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.


FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.


FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. 5. ed - São Paulo, Cortez, 2001.


HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. 5ª. edição, São Paulo: Loyola, 2014.


MARX, KARL; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 3. ed. São Paulo: Sundermann, 2017.


SOUZA, Jessé. A elite do atraso. Rio de Janeiro: Leya C. P., 2017.


TEIXEIRA, Francisco Carlos. Os fascismos. In.: REIS FILHO, Daniel Aarão. O século XX – tempo das crises – revoluções, fascismos e guerras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 109-163.


THOMPSON, E. P. O termo ausente. In: A miséria da teoria ou planetário de erros. Uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 180-200.


Outras fontes consultadas


Jornal Opção, datado de 02 de maio de 2023.

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