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Por Que Ler “A Elite do Atraso” de Jessé Souza?


SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: da escravidão a Bolsonaro. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.


Jessé Souza é graduado em Direito e mestre em Sociologia pela UnB (Brasília), doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e pós-doutor pela The New School of Social Research (Nova York).


A reedição do clássico de Jessé Souza, A Elite do Atraso, ganhou uma revisão e ampliação das discussões. Seu subtítulo era da “escravidão a Lava Jato” no ano de seu lançamento em 2017, porém no ano de 2019 a obra é relançada com o subtítulo da “escravidão a Bolsonaro”. O sociólogo potiguar percebendo a necessidade de pensar o Brasil contemporâneo amplia suas reflexões mesclando trabalho teórico com o empírico. A capa do livro ganha novas cores, sai apenas do amarelo para dar lugar às cores da bandeira brasileira. A inovação é a seta apontando para a esquerda, dando a entender que há alternativa para o Brasil. O livro, grosso modo, para não alongarmos muito, se divide em três partes: “A escravidão é nosso berço”; “As classes sociais do Brasil Moderno” e “A corrupção real e a corrupção dos tolos”.


O autor inicia sua discussão mencionando que é preciso pensar o Brasil a partir do “descobrimento” para compreender o cenário atual. Souza (2019) com sua interpelação inovadora balança e polemiza o pensamento social brasileiro quando tira do lugar comum os cânones da interpretação do Brasil. Aqui estamos falando de intelectuais da envergadura de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro. Para Souza (2019), esses autores criaram uma teoria social intocável em relação ao modo de pensar o Brasil e que por várias décadas vem sendo reproduzida pela intelligentsia brasileira.


De acordo com Souza (2019) é preciso descontruir as interpretações desses intelectuais citados acima, e é isso que o mesmo se ocupa em fazer na primeira parte do livro. Gilberto Freyre principalmente no seu clássico Casa Grande & Senzala, de 1933. As críticas a Freyre são direcionadas a sua análise isenta de conflitos e de contradições da sociedade brasileira. Souza (2019) ironiza insinuando que nós todos somos filhos de Freyre, o discípulo de Franz Boas que inicia o chamado culturalismo que o sociólogo potiguar vai desmistificar ao longo de seu texto. As ideias de Freyre é um apagamento da violência física e simbólica ocorrida no período colonial, à concepção de miscigenação é uma espécie de “sadomasoquismo” freyriano para explicar o “microcosmo” da relação da casa grande com a senzala (senhor e escravas/escravos).


A crítica do autor endereçada a Sérgio Buarque de Holanda é que o mesmo continuou a tese levantada por Freyre se valendo dela como a “argamassa” para a sustentação da sua noção de “homem cordial” (jeitinho brasileiro) para falar do complexo de “vira-lata” (p.31) do brasileiro como uma herança maldita dos ibéricos, diferente dos ingleses empreendedores e gestores ligados ao protestantismo. A ideia de patrimonialismo em Holanda é a extensão das instituições portuguesas para sua colônia, o Brasil seria uma continuação de Portugal fora da Europa.


Essa intepretação também chegou até Raimundo Faoro na sua obra os Donos do Poder, de 1958. O autor segue a noção de patrimonialismo criada por Sergio Buarque de Holanda e, sobretudo, aprofunda na discussão dessa herança do Estado português e de suas instituições. Esse ponto é fulcral para as reflexões de Souza (2019), mais a frente, no seu livro, vendo a necessidade de desconstruir que o Estado é o culpado de toda corrupção da nação e os intelectuais e a sociedade brasileira beberam nessa fonte que reverbera até o tempo presente.


O ponto central da discussão sobre a nossa herança é o que Souza (2019) desmistifica nos primeiros capítulos. O autor ao descontruir as teses dos três autores clássicos mencionados anteriormente levanta a hipótese que o nosso passado não tem semelhança alguma com o modus vivendi português, o nosso modus operandi é essencialmente singular, não houve escravidão na península ibérica nas mesmas proporções e características da escravidão brasileira. Então, o que o autor coloca é que nós temos um modelo de organização societária de “novo-tipo”, específico, por isso, não há continuação de instituições e Estado português no Brasil.


De acordo com o autor não se compreende o Brasil sem antes fazer uma radiografia do seu passado escravagista. Pós-abolição, em 1888, a obra de Freyre Sobrados e Mucambos, de 1936, citada por Souza (2019), é o retrato do período em que o país começa a criar as divisões entre as classes sociais e o início de um pequeno esboço de urbanização. Assim, se inicia o processo de “guetização” e exclusão da população negra de forma institucionalizada.


Na segunda parte o “carro-chefe” da discussão é o “Brasil Moderno”, dando lugar a uma nova configuração social. Aqui nasce o que o autor chama de “ralé brasileira” que é a nova classe de escravos da modernidade. O negro recém-liberto que foi viver nas cidades sem nenhum tipo de direito ou arranjo para a inserção no mercado de trabalho. Outro ponto nodal da abordagem de Souza (2019) é o desaparecimento da esfera familiar que dominava as relações socioeconômicas destacadas pela teoria freyriana que agora passa a dar lugar a uma burocracia administrativa do Estado. Nessa transição surge, na época, a chamada classe média que é composta por profissionais liberais. É interessante não perder de vista, uma classe não é definida apenas pela aquisição econômica, mas por uma série de fatores, como capital cultural e intelectual.


Essa monopolização dos bens de consumo são os requisitos para medir o poder de uma classe. “[...] a classe média é uma classe do privilégio” (p. 155). Como vimos nas palavras do autor, esta nova classe que surge, historicamente, tem alinhado os seus sonhos e desejos a ser semelhante, ou seja, a fotografia da “elite endinheirada” (p.123) que a colonizou. “No Brasil a classe média sempre foi, desde meados do século passado, a tropa de choque dos ricos endinheirados” (p. 123). Esse processo histórico é visto pelo autor como a colonização da esfera pública pelo fato de boa parte da classe média se encontrar no funcionalismo público e na mídia. Apesar da visão teleológica de fazer parte da “elite da rapina” (termo do autor) ela faz parte da classe trabalhadora.


Como a classe média tenta se espelhar na elite do dinheiro? O autor dá a resposta da seguinte maneira, investindo no capital cultural e intelectual de seus filhos e comprando o tempo livre para que eles possam estudar e se especializar em uma área. Para Souza (2019) o ódio da classe média sobre a “ralé brasileira” é fulcral nesse sentido. O desprezo, a indiferença e a humilhação são as marcas do seu desafeto com os mais pobres.


Voltando a discussão sobre a noção de patrimonialismo e a ideia da corrupção apenas do Estado, veremos, “O que estava em jogo era a captura, agora intelectual e simbólica, da classe média de suas frações letradas pela elite do dinheiro” (p.140), para produzir e reproduzir no tempo os valores do neoliberalismo burguês. O ódio ao Estado é o substrato da elite brasileira para criar uma ideologia da corrupção da esfera pública que funciona como sustentáculo do bloco hegemônico de poder simbólico da elite do dinheiro.


Atribuir todos os males do Brasil ao Estado foi algo que a elite brasileira fez de forma magistral. Souza (2019) nos convida a reorientar o olhar para a verdadeira corrupção que não é a do Estado, mas da elite do dinheiro que faz pactos com frações da imprensa e com a esfera política, praticando o lobismo e faturando muito dinheiro encastelada na figura do Estado, atuando de fora, mas se valendo dele para faturar os seus milhões. O poder simbólico é algo fundamental, distorce o mundo e cria uma máscara que esconde o real.


Na última parte o autor busca demonstrar em qual lugar se encontra a real corrupção no Brasil. A corrupção de Cabral, no Rio, citada pelo autor foi um dos vários exemplos de como os “palatinos” da Lava Jato e a Globo surfaram na onda (para utilizar uma expressão coloquial) do Estado corrupto criando uma imagem da necessidade da destruição do mesmo e o triunfo da antipolítica. Souza (2019) aponta a verdadeira corrupção em várias passagens de seu texto. Em uma delas: “[...] os grandes bancos lucraram mais, precisamente, quando o país estava na pior. Em meio à crise atual, por exemplo em agosto de 2017, o Bradesco e o Itaú, os dois maiores bancos brasileiros, registraram lucros estratosféricos” (p.242).


Essa interpretação do autor que traça uma nova visão sobre o Brasil que vinha sendo saqueado pela “elite da rapina” é um alerta aos brasileiros, “É importante, [...], analisar a corrupção real, e não apenas a dos tolos propagada pela grande imprensa”. (p. 242). As reflexões feitas no posfácio dessa nova edição revisada e ampliada aponta o nascimento de uma fração da classe média chamada pelo autor de “protofacista” que emergiu do Golpe de 2016 e da crise do PT, que boa parte dos brasileiros acreditavam que o candidato “preferencial da elite do atraso” (p. 250) seria Geraldo Alckimin, porém o tucano não encantou o eleitorado de direita e deixou esta lacuna ser preenchida pelo então, à época, candidato a presidência Bolsonaro. A elite do rentismo não querendo ficar de fora do poder aliou-se ao mesmo, “Afinal o fascismo sempre foi o ‘plano B’ dos proprietários que só pensam no próprio bolso [...]” (p. 250).


As impressões que este livro traz e que o autor nos apresentou de forma lúcida é que o poder é algo que distorce o mundo e os sujeitos que o habitam. A violência física foi deixada em segundo plano na contemporaneidade para dar lugar à outra forma de violência, a simbólica. Souza (2019), do inicio ao fim de sua obra, insiste neste ponto nodal como o poder simbólico é efetivamente inexorável no campo da dominação e colonização do modo de pensar. A ideologia como violência simbólica estruturou de tal modo o pensamento brasileiro que, segundo o autor, o Brasil nunca tinha tocado nas suas intepretações feitas pelos cânones da teoria social do nosso país.


Se pudéssemos utilizar uma palavra-chave para definir o trabalho do sociólogo potiguar a mais ideal seria desconstrução. O autor se esforçou da primeira a última página para desconstruir o modo de pensar o Brasil, da escravidão ao tempo presente. Na sua escrita, em determinado momento de sua obra, deixa clara a influência de Max Weber: “[...] autor que estudei mais tempo e mais apaixonadamente que qualquer outro por haver me ensinado a importância da dominação ideal simbólica do mundo social.” (p. 211). Notamos que há também certa influência, mesmo leve, de Pierre Bourdieu. Para quem procura uma leitura polêmica, irônica e bem desconstruída sobre o Brasil é necessário passar pelas páginas desse livro.


Colunista: Iago Brasileiro,

mestrando em História pela UEG/Campus-Morrinhos-Go

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