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Uma construção coletiva: da utopia educacional ao processo de resistência*


Gostaria de agradecer à Coordenação do Conselho Municipal de Educação de Goiás, especialmente por ter me convidado para participar de um momento tão importante, quando se encontram reunidos/as educadores/as para socializarem suas experiências, conhecimentos, pesquisas e utopias em defesa de uma educação pública, gratuita, democrática, emancipadora e de qualidade. Ter a oportunidade de dividir esse espaço com vocês, nesta Conferência Nacional de Educação, é motivo de muita alegria e de responsabilidade. Não tenho a pretensão de apresentar um caminho único, intransigente tanto às ideias quanto às diferentes experiências construídas e vivenciadas no famigerado chão da escola. Pelo contrário, procuro me valer desse espaço para compartilhar algumas leituras e inquietações que versam sobre a escola pública diante de tempos, ainda, difíceis.


Embora a sociedade tenha conseguido reunir forças para derrotar um projeto que ameaçava tanto a escola pública quanto a Democracia brasileira, utilizando-me das considerações de Gaudêncio Frigotto[1], o alívio momentâneo não nos oferece possibilidade de esmorecer. Devemos continuar vigilantes, mobilizados e atuando coletivamente para garantir tanto a liberdade de aprender quanto de ensinar dentro do espaço escolar. Afinal, nós que aqui estamos, acreditamos e defendemos que as condições elementares para uma educação pública e de qualidade passam diretamente por uma escola democrática em todos os níveis e sentidos. Uma escola aberta à diversidade, plural, acolhedora das diferenças e dos diferentes.


Um dos mais importantes pesquisadores sobre educação escolar no país, José Carlos Libâneo, em um capítulo de livro recentemente publicado[2], tece considerações sobre um valor essencial envolvendo tanto a sociedade, nos seus mais diferentes aspectos - econômico, político e cultural- quanto o espaço escolar. A saber, esse valor encontra representação nas finalidades educativas. Afinal, a escola e a educação escolar, inseridas em uma temporalidade histórica e dentro de um contexto social, não são neutras, pelo contrário. Ambas, escola e educação refletem os valores, costumes, os padrões de comportamento e a ideologia econômica, social e cultural dominante do tempo no qual estão inseridas.


A constatação apresentada no parágrafo anterior, podendo ser percebida na leitura de inúmeros outros/as pesquisadores/as, não significa que professores/as, alunos/as, concordem com o modus operandi da escola. Existem disputas, diferentes ideologias, perspectivas e finalidades educativas tanto para o espaço escolar quanto para a educação pública brasileira. Pelo fato de não serem neutras, constituem-se enquanto espaços em disputa. A finalidade educativa, utilizando mais uma vez das considerações de Libâneo (2019), tem como objetivo produzir um sentido para a escola e, consequentemente, dotar de sentido aquilo que o espaço escolar produz. A saber, educação escolar.


O nosso encontro, orientado no desejo de construir e consolidar uma Gestão Democrática e uma Educação de Qualidade, somente se sustenta porque acreditamos e defendemos uma finalidade educativa para o ensino público. No entanto, nossa defesa, na condição de educadores/as, não é compartilhada por toda a sociedade. Existem grupos, associações e projetos que têm atuado insistentemente para inviabilizar tanto a construção quanto a consolidação de uma gestão democrática e uma educação de qualidade nos ambientes escolares.


Na condição de professor/pesquisador influenciado pelas teses marxistas, analisando a sociedade a partir da luta de classes, considero que os dois projetos, ou melhor dizendo, às duas finalidades educativas que estão em disputa neste momento merecem uma análise mais pormenorizada. Com maior capacidade de influência, resultante da ideologia dominante, destacam-se os atores e grupos sociais que têm pensado e produzido políticas públicas como se a escola fosse uma empresa, moldada e diretamente influenciada pelas teses neoliberais. Destarte, a função essencial da escola encontra-se voltada para a formação de jovens estudantes para um mercado de trabalho cada vez mais precarizado. Precarização no sentido mais abrangente do termo, atingindo com cada vez mais intensidade professores e professoras. 


Atualmente os/as profissionais da educação deparam-se com uma carga horária de trabalho extenuante, fiscalizados intermitentemente em sua prática docente, sendo avaliados pelos exames nacionais e internacionais de verificação da aprendizagem. Além desses fatores, professores/as têm se deparado com um cenário de desvalorização da carreira docente, tanto a nível da remuneração quanto da formação continuada e, não menos preocupante, têm acompanhado o crescimento de um caldo cultural reacionário que se volta contra a prática docente, impossibilitando, entre outras questões, o exercício da liberdade de cátedra. O resultado desse cenário tem sido o adoecimento de professores/as tanto nas escolas públicas quanto nas privadas.


A precarização do ensino público, compreendida nesse ensaio como sendo uma finalidade educativa neoliberal, ou seja, um projeto para a educação, fica perceptível nas últimas políticas educacionais implementadas – reformas curriculares e reestruturação do Ensino Médio, quando objetivam atender unicamente os interesses mercadológicos, reduzindo o sentido da escola à uma formação tecnicista, mecanizada e repetitiva sobre habilidades e competências que o estudante deverá aprender durante sua formação escolar. Assim, a escola passa a ser entendida como se fosse uma empresa. Porém, insistindo na tese de Christian Laval; A Escola não é uma empresa[3].      


Essa finalidade educativa, influenciada pelas teses neoliberais, está muito distante de ser democrática. Ela é impositiva do início ao fim. Direcionada pela ideologia de mercado e por seus agentes, especialmente organizações com fortes vínculos com os setores empresariais e financeiros do país, empurra sobre professores/as planos de ensino, conteúdos a serem ministrados em sala de aula, metodologias a serem adotadas para assegurar a aprendizagem, entre outros fatores que condicionam o sentido da escola e do ensino/aprendizagem para atender unicamente os anseios da classe dominante. 


A meu ver, no intuito de viabilizar as condições necessárias para termos uma gestão democrática e uma educação de qualidade, é urgente identificar quais são os atores e grupos que dificultam a construção de escolas democráticas e, consequentemente, dificultam a liberdade de aprender/ensinar. A partir do processo de identificação, da consciência sobre os diferentes sentidos e finalidades que estão inseridos no espaço escolar, poderemos, na condição de professores/as, disputarmos coletivamente o sentido da escola e da educação pública brasileira. Destarte, podemos garantir que todos/as tenham direito a uma educação democrática, inclusiva, acolhedora e emancipadora. Princípios e valores que podem ser encontrados nas teses e nos ensinamentos de Paulo Freire[4]


Nesta conferência não tenho a pretensão de apresentar diretrizes para a construção e consolidação de uma escola democrática, pública, possibilitando os instrumentos de um processo de ensino/aprendizagem que nos conduza para uma formação humana. Essas diretrizes, a meu ver, devem ser uma construção coletiva, envolvendo não unicamente à comunidade escolar, mas toda a sociedade civil organizada. O envolvimento da sociedade não se apresenta como um objetivo fácil de ser alcançado. A dificuldade não poderá ser explicada caso seja entendida como se fosse uma mera recusa das pessoas, não querendo participar e se envolver nas decisões relacionadas ao processo escolar, pelo contrário. No decorrer do processo histórico, educação escolar sempre foi considerada um privilégio e não um direito nesse país.


O privilégio educacional foi utilizado para demarcar espaços de poder, característica de uma sociedade de classes. No contexto contemporâneo, quando cada vez mais pessoas compreendem o acesso à escola como um direito, os interesses dos grupos dominantes, conforme observado, procuram fazer do acesso à escola um meio para formação, não necessariamente humana, mas uma formação voltada unicamente para o precarizado mercado de trabalho. A reivindicação da escola pública como espaço de formação humana, acolhedor e democrático poderá ser uma das diretrizes apresentadas para envolver a sociedade, trazendo-a para dentro desses espaços, fazendo-a acreditar na possibilidade de construção de uma escola pública e do seu papel essencial na transformação da vida coletiva. 


O esforço coletivo, a meu ver, é um dos objetivos inerentes dessa Conferência Nacional de Educação, possibilitando que estejamos reunidos neste encontro com o desejo de construção de uma escola democrática em todas as suas instâncias. Na condição de professores/as, durante a formação acadêmica, da graduação até o cenário da pós-graduação, nos mais diferentes momentos nos foi apresentado a necessidade de termos uma capacidade de leitura crítica e consciente. Nesse sentido, gostaria de convidar todos e todas para que tenhamos uma leitura crítica da nossa prática pedagógica, dos espaços escolares que atuamos, do processo de ensino-aprendizagem que construímos ou somos condicionados a construir dentro da sala de aula.


Uma leitura crítica e consciente possibilitará uma desnaturalização daquilo que tem sido apresentado como elemento natural e, consequentemente, tem se estruturado tanto nas escolas quanto nas universidades no decorrer das últimas décadas. Quando apresentamos um modelo educacional que não desejamos, temos um pressuposto importante. A saber, o pressuposto da recusa. No entanto, não podemos nos contentar unicamente com a crítica, sendo necessário apresentar horizontes/perspectivas sobre o projeto que desejamos para a educação pública brasileira. O nosso desejo, enquanto horizonte orientador, sinaliza para uma educação pública, gratuita, democrática, emancipadora e de qualidade.


A partir da constatação, não resta dúvida sobre a existência de um longo percurso a ser trilhado. No tempo presente, utilizando às considerações de Garrido Pimenta[5], entende-se que a educação pública está amplamente dominada pelo neotecnicismo neoliberal. Não podemos acompanhar esse cenário com naturalidade, continuando romantizando a escola, o ensino e o espaço escolar. No entanto, um adendo. A escola pública, apesar dos obstáculos proporcionados pelo avanço mercadológico, continua sendo muito importante. Macaé Evaristo considera que, mesmo diante de todos os problemas vivenciados nas últimas décadas, a escola salva milhares e milhares de vidas todos os anos no Brasil[6].


Entretanto, diante desse cenário, uma pergunta parece ser inevitável. Qual o ensino/aprendizagem oferecido pela escola e que se torna ou nos é apresentado como importante?. Trabalho com a formação de professores/as desde o início da década passada. Nesse ínterim, entre inúmeras falas e reflexões dos/as estudantes, talvez a afirmação que mais tenha ouvido seja: “A escola e a educação são importantes porque formam indivíduos críticos e conscientes”. Diante da afirmação, moldando o imaginário coletivo, gostaria de acrescentar: “Possibilitando ler e se posicionar ativamente diante da realidade social”.


Tanto as considerações dos estudantes quanto o meu adendo apresentam uma leitura utópica da escola. Acredito que encontramos o horizonte que devemos ter em mente. Ou seja, o desejo de uma escola utópica. Mészáros compreende o sentido dessa escola como capaz de promover uma educação para além do capital[7]. Nesse modelo que está por vir, necessitando ser urgentemente construído, a gestão será democrática porque envolverá toda a comunidade nas tomadas de decisões, principalmente na questão do ensino/aprendizagem a ser socializado dentro e fora da sala de aula. A comunidade encontrará os meios para construir um sentido para a escola e uma educação que faça sentido diante da realidade social.


A partir da utopia escolar, a educação será de qualidade porque será orientada pelos valores democráticos. Uma educação acolhedora, humana, antirracista, intolerante a qualquer forma de discriminação, seja religiosa, étnico-racial, de orientação sexual ou de gênero. Haverá a construção de uma educação ambiental, comprometida na compreensão das mudanças climáticas, orientando os/as estudantes a entenderem quem são os grandes responsáveis pela destruição do meio ambiente, conduzindo o planeta Terra a uma condição de não retorno. Teremos uma educação que oferecerá condições de se construir um princípio da coletividade entre os/as estudantes, onde e quando o problema do outro passa a ser, imediatamente, um problema nosso.


A utopia educacional será fomentada pelo papel indispensável do estado, oferecendo todas e as melhores condições de trabalho para professores/as e estudantes. Entre as condições de trabalho, além daquilo que é elementar - infraestrutura, formação continuada e remuneração adequada - estará garantida a liberdade de cátedra, seriamente ameaçada nesses tempos de avanço social e institucional da extrema-direita e da militarização do ensino. O sonho de uma escola pública, gratuita, democrática e de qualidade é um sonho nosso. Um desejo de todos/as reunidos/as nessa Conferência Nacional de Educação. Por ser uma utopia, somente terá condições de ser efetivada por meio do esforço coletivo. 


Agradeço imensamente à atenção de vocês. Muito obrigado!.



Notas:                              


*Palestra ministrada durante a Conferência Nacional de Educação, etapa intermunicipal, realizada na Cidade de Goiás. A conferência aconteceu no dia 22 de novembro de 2023.


[1] Consultar FRIGOTTO, Gaudêncio. Escola “sem partido”: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017.     

[2] Consultar LIBÂNEO, José Carlos. Finalidades educativas escolares em disputa: currículo e didática. In: LIBÂNEO, José Carlos; ECHALAR, Adda Daniela Lima Figueiredo; SUANNO, Marilza Vanessa Rosa; ROSA, Sandra Valéria Limonta. Em defesa do direito à educação escolar: didática, currículo e políticas educacionais em debate. Goiânia: Editora da UFG, 2019.    

[3] Consultar LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2019.    

[4] Consultar FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 60ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

[5] Consultar PIMENTA, Selma Garrido. As ondas críticas da didática em movimento: resistência ao tecnicismo/neotecnicismo neoliberal. In: Didática: abordagens teóricas contemporâneas. EDUFBA, p. 19-64, 2019.

[6] A Professora Macaé Evaristo faz a afirmação no Documentário Nunca me Sonharam. O documentário pode ser acessado no seguinte endereço: Nunca Me Sonharam : Download gratuito, empréstimo e streaming : Internet Archive 

[7] Consultar MÉSZÁROS, István. A Educação para Além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2005.



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