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Classe Trabalhadora e Direitos Humanos

Primeiramente, gostaria de agradecer ao Professor Fabiano pelo convite, e dizer que é um prazer estar aqui com vocês, para juntos estabelecermos diálogos acerca das questões que envolvem o trabalho no Brasil. Outro aspecto à ser destacado é a importância de eventos como a 11ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos, que possibilita por meio de curtas, filmes, documentários, e outros, uma importante “provocação” junto a sociedade acerca do papel que atribuímos aos direitos humanos dentro da contemporaneidade.



Nos dias atuais, caracterizado pelo crescimento de um caldo cultural conservador, como bem apresenta a filósofa Marilena Chauí, trabalhar com temáticas sobre direitos essenciais para a vivência e convivência dos sujeitos é, em primeiro lugar, uma política de enfrentamento. E nesse sentido, penso que o cinema tem um papel preponderante, principalmente pelo fato de falar por meio de “muitas vozes”. O cinema se comunica por meio da fala tradicional, por meio das imagens, dos sons, das cores, mesmo que seja preto e branco, comunica se valendo da língua de sinais, do silêncio e de inúmeros outros modos, como apresenta o historiador francês, Marc Ferro em seu clássico livro, Cinema e História (2010).


Assim, por suas múltiplas comunicações, o cinema e o audiovisual, têm condições de fazer a sociedade pensar à contrapelo, ou seja, desnaturalizar o que se vive, de acordo com as perspectivas do filósofo alemão Walter Benjamin. Nesse sentido, o conceito de direitos humanos, ao mesmo tempo amplo e necessário, traz como pauta as perspectivas da liberdade, de direito as condições de inserção social, de respeitabilidade para com a vida das camadas menos favorecidas, e por fim, lutando contra todos os tipos de discriminação, seja elas de cunho religioso, de caráter homofóbico, misógino, sexista, machista, estético, regional, racial e outros. Assim, enquanto tivermos uma sociedade caracterizada pela desigualdade social, e com caráter conservador/preconceituoso, os direitos humanos são uma política sine quo non, no qual, devemos defende-la como política de inclusão permanente.


E nesse sentido, voltado para um olhar que perceba a luta dos menos favorecidos, respeite-as e procura transformar a realidade existente, não podemos em espécie alguma nos distanciar das condições de trabalho historicamente existentes em nosso país, caracterizadas principalmente pela exploração em série do trabalhador, em detrimento da lucratividade exorbitante do patrão. Utilizo o termo histórico, para defender que há uma continuidade das relações entre empregador e empregado(a) em nosso país, que indubitavelmente remonta aos tempos da escravidão.


Como historiador, penso que seja impossível compreendermos a nossa realidade atual sem fazer uma análise minuciosa do passado. Talvez seja o olhar retrospectivo, que Marc Bloch defende, ao escrever um livro para responder há uma pergunta do seu filho, quando indagava o pai acerca da importância da história. Entre inúmeros outros temas abordados no livro, Apologia da História ou o Ofício do Historiador (2001), Bloch defende a ideia da longa duração, quando pensa os acontecimentos do tempo presente como uma continuidade histórica de desdobramentos do passado.


Assim, tendo o historiador francês no cerne da discussão, quando olhamos para os dias atuais, vemos Reforma trabalhista, proposta de mudança na Constituição para substituir os parcos salários dos funcionários do meio rural em moradia e alimentação, em consonância, decreto para abrandar a fiscalização do trabalho escravo, e criminalização de toda forma de organização dos trabalhadores, seja por meio dos sindicatos e dos movimentos sociais, entre outras formas de violência, muita das vezes, velada, que assolam a classe trabalhadora nesse país. Então, todo esse reflexo do tempo presente, se tornará incompreensível se observamos apenas o hoje, sem fazermos uma paralelo com as vertentes do tempo passado. Ao fazermos esse olhar retrospectivo, compreenderemos as continuidades existentes na formação sociocultural do país.


Historicamente, como se organizou a relação do trabalho no Brasil? No primeiro momento, com a chegada dos europeus, as comunidades existentes na América, posteriormente chamadas de indígenas, foram encobertas, como defende Enrique Dussel (1993), pelo fato do europeu em um sentido macro, não reconhecer as especificidades culturais das civilizações existentes, encobrindo todas as suas crenças, valores, credo religioso, e consequentemente suas manifestações culturais, e por último, mas não menos importante, com destaque para o conceito de trabalho.


Desse modo, a ideia de trabalho é deslocada rapidamente da esfera de subsistência como prática cultural do cotidiano indígena, para um outro patamar, permeado pela violência, pelo vislumbre referente a acumulação de riqueza, no qual para esses fins, houve uma exploração sem precedentes na América. Tendo o europeu encoberto o outro, rapidamente houve um processo de coisificação dos milhões de sujeitos existentes nesse vasto território.


A perspectiva da coisificação retira da representatividade do sujeito o viés de ser humano, assim, ele passa a ser considerado uma coisa, um objeto inanimado. A partir dessa representação, todas as formas de violência eram então justificadas pelo caráter de coisa atribuída ao sujeito. Nessa linha de raciocínio, a ideia do trabalho, no sentido de acumulação de riqueza, nasce com a característica de ter dizimado milhões e milhões de vida na América, quando essa dizimação, indubitavelmente, pode ser considerada o maior genocídio de todos os tempos na história da humanidade.


Importante ressaltar que, mesmo tendo milhões de vidas indígenas ceifadas pelo trabalho desumano, o indígena foi tido e compreendido intencionalmente pela historiografia brasileira do século XIX, materializada e representada por meio do IHGB, como bárbaro, ignorante, e preguiçoso. Quem se interessar por toda essa discussão historiográfica, que nos ajuda a compreender o que somos enquanto sociedade permeada pela violência, recomendo o importante livro do teólogo espanhol, Bartolomeu de las Casas, intitulado, O paraíso destruído (2011).


Com a narrativa construída em torno da “preguiça indígena”, europeus no primeiro momento, e historiografia tradicional no segundo, procuravam justificar a introdução distante de ser harmoniosa do negro no continente americano, no qual o Brasil se encontrava umbilicalmente ligado. Assim, a chegada dos africanos em terras americanas se pautou, em todos os sentidos, no caráter da violência, retirando a condição humana do indivíduo. A construção em si, pode ser percebida desde o elemento prático do aprisionamento dos sujeitos oriundos de várias etnias africanas, depois colocados em navios insalubres, quando muitos perdiam suas vidas no translado marítimo. Quando chegavam em terras americanas/brasileiras, o que os esperava? Sim, isso mesmo, o trabalho escravo, que já havia dizimado milhões de indígenas, passaria agora para outro estágio, não menos desumano.


A palavra escravidão por si só já traz um significado impactante, e quando nos propomos a apresenta-la na prática, os inúmeros significados parecem nos corroer por dentro. Segundo a historiadora Kátia Mattoso (1990) no seu importantíssimo livro, Ser Escravo no Brasil, o período de média de resistência física do escravo no Brasil era de 7 anos. Período que muitos(as) podem considerar de curta duração, mas ao analisar as condições de vida desses heroicos sujeitos, rapidamente, se percebe o quantos foram fortes ao resistirem à 7 anos de trabalho mais do que árduo, sofrendo todos os tipos de violência, seja física, simbólica, sexual, na carestia de alimentos e outras.


Com a abolição da escravidão no final do século XIX, as condições de vida do negro no Brasil continuaram e continuam como um processo de longa de duração precárias. No primeiro momento, pelo fato de continuarem a serem percebidos pela elite dirigente do país como se fossem escravos, recebendo míseros salários, quando recebiam, e tendo que lidar com todas as formas de discriminação, sem nos esquecer do incentivo a imigração de europeus para o país. Assim, para o negro, poucas alternativas para a sobrevivência se apresentavam, e uma dessas foi a ocupação de locais periféricos das grandes cidades. Há essa ocupação de resistência e também como um reflexo da segregação social, damos o nome hoje de favela.


Aos interessados(as) em acompanhar as trajetórias da continuidade da violência que os negros enfrentaram após o processo de abolição, recomendo o livro de Célia Azevedo (1987), intitulado, Onda Negra, Medo Branco, ou, José Murilo de Carvalho (1997) com Os Bestializados. Essas trabalhos são de suma importância, por evidenciarem que não se modifica uma realidade sociocultural, somente por meio de leis, mas por uma série de fatores, entre esses o relacionado ao cunho educacional.


Em tese, essa análise de construção histórica, guardadas as divergências de leituras dentro da historiografia, é o “nosso passado”, caracterizado pela violência e opressão daqueles que foram obrigados a entregar, e hoje vendem a sua mão de obra como único meio para minimante garantir a sua sobrevivência. Como podemos perceber, a relação empregador e empregado(a) no Brasil, outrora senhor e escravo, sempre se encontrou muito distante de ser uma relação considerada de respeito mútuo, pelo contrário, a elite dominante sempre se valeu da mão de obra para construir as suas riquezas, para isso, ignorou e continua ignorando o sofrimento da classe trabalhadora.


Percebendo, nesse sentido, a linearidade histórica, o trabalhador brasileiro continua à ser coisificado, e a reforma trabalhista é um claro exemplo dessa coisificação, quando retira direitos da classe trabalhadora para beneficiar os sempre beneficiados donos do poder. Quem tiver interesse em perceber o quanto a camada dirigente se alegrou com a Reforma Trabalhista, poderá ter uma síntese por meio da fala do presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) ministro, Ivies Grandra da Silva Filho, em entrevista para a Folha de São Paulo, no dia 06/11/2017, que disse entre outras coisas o seguinte: “É preciso flexibilizar direitos sociais para haver emprego”.


Em tese, em nome da empregabilidade, não importa se as condições de trabalho sejam ruins, ou a remuneração seja péssima, que haja retirada de uma série de direitos, tudo isso na ótica dirigente fica em segundo plano, desde que haja mais pessoas empregadas, e consequentemente gerando mais lucro. Garantir emprego, dentro de uma sociedade capitalista é importante, no entanto, a leitura tem que ser feita ao inverso, em que condições estão sendo ofertados esses empregos? Pensar em direito trabalhista no Brasil, é pensar em luta histórica da classe trabalhadora, por meio de greves, inúmeras paralisações, organização sindical e enfrentamento as condições impostas pelos empregadores, fazendo surgir desse contexto na terceira década do século XX, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).


O trabalho com mecanismo para a existência da condição humana, é fundamental, como defende Karl Marx no seu importante, O Capital (1985), porém, esse trabalho deve ser prazeroso para quem exerce e de acordo com suas vontades, e não uma obrigação como acontece na história do trabalho capitalista no Brasil. Assim, na perspectiva marxiana, se o indivíduo quiser exercer uma profissão em um dia, e no outro desempenhar uma outra função, que não haja empecilhos para ele fazer isso. Em tese, o trabalho para Marx deveria ser um espaço importante de se assumir em quanto ser humano, e não o espaço para se sentir como mercadoria.


Hoje, ao levantar cedo para ir para o trabalho, você se sente ser humano, ou objeto de trabalho? Onde está a sua felicidade, no trabalho, ou distante dele? Se você anseia pela chegada de algum feriado, não precisa dizer mais nada. Por último, pensar nas condições de trabalho fornecidas pela elite dirigente brasileira, é, acima de tudo, pensar em um processo de exploração da classe trabalhadora. Fico pensando, quantos de vocês que me ouvem nesse momento, e não recebem por horas extras trabalhadas, não têm férias, tampouco décimo terceiro salário, ou nunca tiveram a carteira assinada, para garantir minimamente os direitos trabalhistas. Talvez vocês não vivenciam esse universo, mas indubitavelmente conhecem pessoas que sentem na pele essas condições.


Ao pensar que essa realidade é a de milhões de brasileiros, sinceramente, me entristeço e me sinto impotente para lutar contra essa desigualdade histórica. Talvez a alternativa que me resta, e me valho dela nesse momento, esteja centrada na ideia do diálogo. O objetivo não é acabar com o trabalho, não é destruir as empresas e criminalizar todos os empresários(as) desse país, mas, que esses sujeitos que “empregam” possam ver na classe trabalhadora, homens e mulheres, que sofrem, choram, riem, sentem frio, fome, têm desejos, ou seja, seres humanos e não objetos. Compreender o outro como ser humano, pode ser um grande passo para modificar uma série de desigualdades sociais, entre essas, a que envolve capital e trabalho.


Agradeço pela paciência e atenção de vocês.

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