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A POBREZA E O ESTAR DE CHICO



Lembro-me de escutar minha avó falando de um certo Chico, sempre com muito sofrimento, parecia alguém indesejado, mas eu, no auge da minha pouca idade não ousava adentrar naquele diálogo de gente grande. Quando o Chico aparecia, só algumas mulheres poderiam vê-lo, sinceramente aquilo me parecia injusto e só aguçava minha curiosidade.


A cada mês alguém se prostrava, de voinha a mainha, seguia-se um ritual, tinha-se ensopados no de comer, nada de se mostrar na porta de casa, o corpo carecia de repouso. E era uma tomação de chás de folhas santas, assim chamadas por minha avó que era a médica que se tinha no sertão.


Quando deixamos a paisagem seca e viemos para a selva de pedras, eu temia ter deixado Chico para trás, nunca saberia de quem se tratava, pois ao contrário de voinha, que tudo falava, com a mudança, mainha se calou, ela trabalhava demais, tínhamos muito pouco.


Minha irmã, com dois anos a mais que eu, já era a adulta da casa na ausência de meus pais. A vida nos era dura, o comer e o vestir muitas vezes dependiam de doações. Morávamos na invasão da Estrutural, por ali não tinha estrutura nenhuma, mesmo que estivéssemos a poucos quilômetros do centro de decisões do país.


Em uma manhã de vento úmido no Planalto Central, 21 de abril, mainha iniciara um ensopado, era o que voinha chamava de quibebe, eu adorava, mas só se comia aquela iguaria quando alguém naquela casa recebia a visita do tal Chico. Foi então que percebi que eu poderia conhecê-lo. Mas em meio a tanta ansiedade, vi minha irmã macambúzia, pálida e sem querer prosear com minha curiosidade.


Ela naquela semana não foi para a escola, eu tive que dar uma desculpa. Aos poucos, como quem não quer nada, fui ganhando sua confiança novamente para descobrir o que realmente tinha. Então, abertamente me falou: “o Chico me chegou!” Ainda assim, não sabia por que tanto alarde só por uma visita que nem mesmo eu vi.


Foi então que ela, com a pouca paciência que o período lhe oferecia, me disse que Chico é o nome dado ao período que a mulher ovula, era como se acendesse a lanterna da fertilidade e aconteceria todos os meses. Isso ela ficou sabendo na escola, no livro de biologia. Só que para nós meninas da periferia, além de ser um período de dor física, era também um momento de aflição social.


Lembro que junto do ensopado, mainha deixou uma toalha de banho surrada, cortada em faixas, era com ela que minha irmã estancaria o sangramento. Aquela cena me trouxe comoção. Em lágrimas compreendi quem era Chico e como ele se mostrava injusto.


Sabíamos que a partir daquele dia, todos os meses teríamos aquela preocupação. Conjugo o verbo na terceira pessoa do plural, pois mesmo sem conhecer Chico, eu já sabia sobre sua fama e queria que me fosse apresentado diferente. Foi então que minha irmã e eu começamos a cuidar dos filhos de nossa vizinha, que nos pagava pouco, mas nos dava conforto social feminino em alguns dias do mês, pois era com aquele pouco dinheiro que comprávamos absorventes na venda do bairro.


Sei que assim como eu, muitas meninas não conhecem Chico, que é tratado com tabu, não se fala sobre, não se sabe e nem se comenta, só se sente e calada. Por muito tempo, assim se fez, mas é preciso se quebrar regras, principalmente quando estas expõem, oprimem e excluem quem já é excluído.


“Arre égua”, ter acesso a um absorvente é sinônimo de qualidade de vida para muitas mulheres que estão em condição de vulnerabilidade e se isso é uma carência social, precisa se tornar política pública capaz de atender desde quem frequenta a escola àquelas que moram na rua, validando o direito à cidadania.


A pobreza no estar de Chico já nos calou, mas precisa ser vista, falada por mulheres e homens que pensam este país. Enquanto tudo se caminha a passos lentos, como lesmas no verão enlameado da Estrutural, eu, já conhecendo as regras de meu corpo e desta sociedade injusta, sigo com o povo que conhece seu chão, lutando e abrindo o caminho para aqueles (as) que virão depois de mim.

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