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“ANA GRANDE”



No interior dos gerais, em agosto o vento dança nos limpos e levanta capoeira, cabelos e saias de moçoilas como Ana, uma menina franzina, que veio ao mundo pelas mãos de sua tia avó, dona Lió[1]. A médica que se conhecia naquele lugar de gente forte, mesmo que por dentro.


Sem tamanho para alguns afazeres, era poupada, mas não esquecida, afinal, todo mundo ajudava na lida. Acordava-se cedo na época do plantio, Ana levava a comida no roçado enquanto os irmãos pegavam no cabo da enxada, eram duas refeições. No quebra-jejum no meio da manhã tinha-se abóbora ou banana com leite e mais tarde no almoço, comida forte com carne de osso.


Ana apesar de miúda tinha os pés ligeiros, costumava andar léguas para noticiar o nascimento de um irmão, era anunciadora da boa nova no sertão. Desde cedo apreendeu com a mãe os sinais das “dádivas gratuitas”[2], enquanto o pai plantava o arroz, seu olhar procurava no céu a jandaia, pois se a ave passar por cima da roça no momento do plantio, a colheita é farta[3], não passariam precisão.


Mas carece vigiar a jandaia, pois ela desce e sua parte quer levar.


Os dias por ali não seguiam a ligeireza das correntes do ribeirão que cortava a várzea, o tempo é lento, rebento de Nossa Senhora de Santana, que de cima de seu andor, abençoa a chuva do caju, a florada do pequi e Ana, sua afilhada e devota.


A Santa ainda era quem olhava por aquele povo, pois por naquelas bandas só passava carro na linha do transporte, mas naquela tarde quente aquele barulho não vinha do céu, não era sinal de chuva, o ronco levantava poeira, anunciava gente estranha. Com medo de visita, a meninada se embrenhava no mato, deixava só os mais velhos fazendo sala.


A visita inesperada era de um compadre da cidade, que a muito não se via. Veio em busca de uma menina para ajudar sua esposa na arrumação da casa e em troca receberia comida, dormida e a oportunidade de estudar.


Não era a primeira vez, nem a última que alguém aparecia atrás das meninas da região, elas pra cidade iam, ou melhor, as levavam, enquanto os meninos daquelas bandas nunca saiam.


Com o coração aflito dona Rita, mãe de sete, via sua menina caçula com a sorte grande, teria Ana a oportunidade de a escola frequentar. Ao escutar os gritos de sua mãe, Ana saiu do mato desconfiada.


Arrumaram rapidamente a pequena trouxa, com três vestidos surrados, duas saias feitas na máquina de costura e com arremate a mão, com linha fiada ali, que de tão comprida parecia a do Equador. Detalhes que fariam Ana se lembrar de sua rotina que girava em torno da casa, da roça e dela mesma.


Despediu-se de longe dos irmãos, abraçou a mãe e com os olhos acolheu a benção do pai que não sabia abraçar. Sem muito acreditar naquele momento, entrou no carro que rangia a porta e tinha os bancos cobertos por mantas de crochê.


Pelo caminho pouco falou com o compadre, só pensava no que a esperava. Já na cidade, não a pouparam, nem consideraram sua pouca idade, lavava, cozinhava em cima de uma banqueta e no final do dia, com seu corpo miúdo e cansado, para a escola ia sobre os olhares daquela senhora que de tudo desconfiava.


Foram dois longos anos sem rever sua família e trabalhando sem direito a nada, seus pés tocavam dia a dia a lama que escorria no quintal, pois guardava os chinelos para ir à escola. Mas em um belo dia, pela surpresa da senhora ranzinza, seus pais que na cidade nunca iam, por lá apareceram.


Com fogo nas ventas o pai de Ana foi logo dizendo que o compadre não cumpriu o trato, não tiveram mais notícias da filha, não sabiam se até viva iam encontrá-la, mas estavam ali para buscá-la. Ana se via aliviada por estar livre daquela senzala mascarada, mas sentia que ir a escola se tornaria mais difícil.


Mas seus pais vieram decididos, parte dos meninos cresceram e na roça não queriam ficar e já que Ana na cidade estava, ali também vieram morar. Arrumaram um barracão pra arranchar a meninada, dentro dele havia um enorme vazio, o eco se perdia. Cozinhavam em uma trempe de pedra onde queimavam cavaco de madeira. As poucas camas eram forquilhas com estrado de taboca.


Mesmo com toda a dificuldade, no bairro Morro Encantado[4] se sentiam em casa, a terra fofa registrava o rastro de quem ia e vinha da escola, os lembrava dos caminhos percorridos, dos limpos preenchidos pela vontade de vencer. A luta fez de Ana grande, conhecedora de suas forças interiores e fazedora de bondades.


Para a comunidade ela voltou. Com um embornal cheio de livros, teceu seu próprio caminho assustando até a “cigana analfabeta que leu a mão de Paulo Freire”[5].


Sob o olhar de Nossa Senhora Santana, sua madrinha, segue a devota dos livros, que encontrou na educação a salvação e a liberdade de seus dias.



Referências:


CLAVAL, P. História da geografia. Lisboa: Edições 70, 2006. 142 p.


CRUZ, V. C. Lutas sociais, reconfigurações identitárias e estratégias de reapropriação social do território na Amazônia. Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. 2011.



ROSA, R. S. A produção agrícola na comunidade Kalunga Vão de Almas: um estudo de caso. Trabalho de Conclusão de Curso. Licenciatura em Educação do Campo – Faculdade UnB Planaltina. Universidade de Brasília, Brasília, 2016.


SANTOS, N. R. Do território quilombola Kalunga à universidade: minha trajetória socioespacial. Monografia entregue ao curso de Licenciatura Plena em Geografia da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2021.



Notas:


*Título cedido por Gonçalves (2022).

[1] Grande parteira da Comunidade Quilombola Kalunga de Cavalcante- Vão de Almas. [2] GONÇALVES, R. J. de A. F. Mineração e o cercamento das águas do Cerrado. Disponível em https://midianinja.org/campanhacerrado/mineracao-e-o-cercamento-das-aguas-do-cerrado/.Acesso em agosto, 2022. [3] Saberes compartilhados pela Comunidade Quilombola Kalunga de Cavalcante –GO. [4] Quilombo urbano na cidade de Cavalcante-Go. [5] Citação da música Beradêro – Chico César.

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