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ARAGUAIA



Recolhido em meu leito, sinto a brisa que me toca por aqui

Além de leve, ela é breve e quente, segue a corrente, cria mapas que flutuam nas geografias do Cerrado

Movimenta pássaros, desassossega as folhas das árvores, assanha a areia que em minhas cabeceiras viram poeira, mas lentamente se agasalham criando novos contornos.


Recolhido em meu leito, sinto-me guardado por jatobás, aroeiras, muricis

É certo que muitos guardiões se foram, deixaram de ser Cerrado pelo som do motosserra

Já não têm tantas cores, o verde intenso virou pasto, virou clareira em dia de mormaço.


Recolhido em meu leito, serpenteio lentamente, sigo um tempo que não é do semáforo

Contorno bancos sem dinheiro, repletos de areia

Areia que desce das barrancas e assoreia o leito que me recolhe

Meu movimento é calento como poesia nos becos da cidade de Cora.


Recolhido em meu leito, vejo chegadas e partidas

Sou estrada de alegria em um julho ensolarado

Sou Ipanema no Cerrado

Mas por detrás do calendário de tanto sol, tenho marcas de luta e (re) existência

Sou berço do povo Karajá, minhas águas volumosas foram tingidas de sangue em guerrilha, tenho cortes profundos, sulcos dolorosos e encobertos.


Recolhido em meu leito, sinto o aninhar e o fatigar da passarada

A cantoria começa cedo, as cores saltam aos olhos de quem vê

É a festa passarinhesca ancorada na copa das árvores

É o canto sem maestro que se amplia com o eco e chega lá longe, onde o sol se esconde.


Recolhido em meu leito, avisto a poesia que se movimenta sobre a areia, são borboletas amarelas, destas que sorriem no ar, traçam com suas asas um risco frenético incapaz de acompanhar

Além das risonhas amarelinhas, enxergo pegadas que mapeiam um caminho sem rumo, pois lugar de pássaro ‘andar’ é no céu

A areia é paragem onde se choca e alimenta o futuro

Ali também depositam penas, coloridas ou não, representam a renovação.


Recolhido em meu leito, sinto que me falta o ar

Esvaziam-me lentamente

Retiram-me água, peixe

Com rede ou anzol, a fartura de ontem é vista como a escassez do hoje

As manchas de óleo na lâmina d’água anunciam julho barulhento

Fogem-se os peixes, chegam-se os humanos com seus costumes plastificados, Por aqui bebem, comem e ‘esquecem’ resíduos, por mim sempre lembrados.


Recolhido em meu leito, faço curvas, guardo riquezas, leio minha própria sorte que conta com a desventura de está cercado por quem disputa o tripé natural e gratuito

Carrego a ilusão do ser mar no sertão, mas me alegro com a não solidão

Quisera eu ser quem sou com meu jeito pacato e permanecer intacto aqui no mato

Desfrutar do sol que me toca no final da tarde e tinge o horizonte de vermelho Anunciar com um rastro prateado sobre as águas, a chegada da lua que enche o céu.


Recolhido em meu leito, sinto-me como divindade que atende a suplica do peixe com simplicidade.


Recolhido, temo por sujeitos com nome e sobrenome os quais tenho laço umbilical

Recolhido, temo por fases que não alcançam a lua, mas tocam a urdidura do capital

Recolhido, temo por um Araguaia que se encolhe e em poças se acocha

Recolhido, temo por um leito seco.




Referências:


CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Araguaia: Depois da Guerrilha, uma outra guerra - A luta pela terra no Sul do Pará, impregnada pela Ideologia da Segurança Nacional (1975-2000). Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais, 2013.


GONÇALVES, Ricardo Junior de A. Fernandes. Mineração e o cercamento das águas do Cerrado. Disponível em https://midianinja.org/campanhacerrado/mineracao-e-o-cercamento-das-aguas-do-cerrado/ .


MEDRADO, Joannes de Sousa. Povo Karajá de Aruanã/Go: Território e vida indígena. Dissertação de mestrado – Universidade Estadual de Goiás, Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGEO), 2021.


Música: Rio Araguaia. Juraildes da Cruz.


SANTOS, Ary S. Nascentes do Rio Araguaia: Ocupação, degradação e análise do processo de pró-recupeção. Dissertação de mestrado em Geografia, Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais , 2002.


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