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MEU VELHO


Por Karla Teixeira[1]


Era tarde de primavera, quase anoitinha, eu estava na companhia do meu velho e ele muito me dizia sobre tudo, eu afinava minha escuta, parecia querer guardar no mais profundo baú aquelas memórias narradas.


O passeio ia das sangrias que banhavam a fazenda ao cheiro e sabor do pequi, jatobá, murici, mangaba, era do Cerrado que ele gostava de falar. Me contava sobre o chegar naquela terra. Vieram de lonjuras áridas, de um norte de gente forte. Aqui o mato alto tiveram que tirar, levantaram casa de taipa, abriram clareira para as primeiras roças plantarem, e o gado, a este era pouco, nem carecia contar. Trouxeram na viagem 3 leiteiras, um garrote e duas novilhas quase pegando cria, todos conhecidos pelo nome, faziam parte da família, criados na “larga”.


Em um assento feito por ele mesmo, meu velho rabiscava no chão batido sua vivência com o Cerrado, me levava para um tempo desconhecido ao afirmar que quando chegaram por aquelas bandas, escutavam-se as onças esturrar do outro lado do rio Mucambo[2], elas pareciam demarcar o território, dali não poderíamos passar. Hoje naquele mesmo lugar passa boi, gente, menos onça.


Ele com a voz já trêmula, me contava sobre os lugares sem cerca, eram os gerais ditos por Porto-Gonçalves (2021)[3]. Espaços livres em que o rio ainda não dividia estados, mas gente como nós não podia assim do nada lá chegar, pois do outro lado da aguada era uma grande fazenda, o dono pousava de avião. Aos pouco aquilo tudo virou pasto, lambendo as margens do Mucambão.


Meu velho não era de pescar, mas peixe o povo pegava muito, subiam de rio acima com rede e anzol, mas aquela abundância toda nos trouxe aos vazios de hoje. Já a fazenda grande aos poucos perdeu seu apreço, as lavouras de arroz deram lugar a uma vasta criação de cupins até o dia que venderam-na para o governo. O povo ficou ouriçado, igual sapo após a chuva atrás de aleluia. Era a oportunidade dos arrendatários conseguirem um pedaço de terra, pois fariam a tal reforma agrária. Reforma por aqui nenhuma, não houve democratização da terra.


Meu velho enfurecido, as vezes um gole de água precisou tomar... Percebi que era importante para ele me contar tudo aquilo, dessa forma; minha atenção se rendia ao caso.


Ele tinha conhecidos que entraram na espera pela terra, foram meses acampados aguardando um sorteio, sem saberem que sorte teriam. Muitos deles de nada do Cerrado sabiam, foi uma luta. Poucos ainda permanecem por lá, acharam um jeitinho de para a cidade voltar, eu até me arrisco a concordar com Mendonça (2021)[4], pois penso que foram expulsos, por aqui não puderam ficar.


Meu velho afirma que este Cerrado de gentes e cheiros já não é mais o mesmo, é uma imensidão de terra limpa que nos corta coração. Onde se tinha brejo, drenaram a área e hoje vemos “transformers” do Agro Pop fazendo o papel do regador que usamos na produção de auto-consumo.


Sem muito letramento meu velho me provoca, nos remete a Brandão, (2020), quando afirma que a “universidade nos dá títulos, mas é gente do povo que nos faz um sabedor”[5].


Vendo que ainda tem assunto, deixo meu velho prosear. Me mostra um limpo no pé da serra e com rugas na testa diz que alguns anos atrás, lá ainda se via a florada do Ipês em agosto, de julho a outubro a Sucupira aparecia e nos confundia com o Jacarandá Mimoso, era uma sinfonia de cores que atraia os olhares, mas o fogo por lá chegou, derrubaram tudo, nada restou.


Meu velho vê com lamento o secar da sangria que serpenteava em parte da fazenda, a água cortou, e nem adianta colocar a culpa em São Pedro! Quem pertence ao Cerrado carece cuidar, mas muitos que cá estão não têm relação nenhuma com este chão. São grandes grupos, organizados em redes, não aquelas de se balançar a sombra de um Jatobá, mas de serviços para atender o bem viver.


Aqui estamos, meu velho e eu em um Cerrado cercado de vazios, mas de muitas lutas. Anunciamos deste lugar que ocupamos e pertencemos que precisamos do CERRADO VIVO mesmo que este esteja em chamas e estas queimam as condições de permanecia do camponês em suas terras!



Notas:

[1] Mestranda do Programa de Pós Graduação em Geografia (PPGEO). [2] Afluente do Rio Tocantins, divide os estados de Goiás e Tocantins no norte de Goiás. [3] Citação da I Semana Integrada do Cerrado – disponível em https://www.youtube.com/watch?v=UPfvQD9SE3c&t=1368s [4] Professor Marcelo Rodrigues Mendonça (IESA/UFG) em suas ultimas falas públicas, desconstrói o conceito de “êxodo rural” e nos permite pensar neste como processo de “exclusão”. [5] Fala presente no Lançamento do Dossiê sobre Cerrado do PPGEO/UEG e Revista Élisée, 2020.

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