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TERRA DE MULHERES*



Com uma lata d'água na cabeça lá vai um corpo sinuoso pela estrada, seus ombros luminosos de suor refletem o r-existir no sertão. Com pés descalços, ela toca o chão, sente a quentura da terra que a faz lembrar das lonjuras deste novo tempo. O destino é a cacimba do Boqueirão, a única da região que resistia ao inverno seco do planalto central.


Quando não leva a meninada para ajudar com a água, o caminhar tem como companhia as ladainhas entoadas no Festejo de Santa Bárbara ou a sofrência escutada no rádio de pilha. É que o barulho espanta a solidão no trilheiro de ervas daninhas que varrem as canelas e as deixam com escritas cinzentas.


Com passos largos e com hora para voltar, aquele corpo vai ao encontro d’ água. O vento anuncia que está perto, pois o ar fresco movimenta a saia do vestido florido em meio a uma paisagem seca.


Da barranca, avista o alvo. Ela desce de cócoras, pois a declividade a impede de se manter altiva, ajoelha-se na terra como quem agradece, e com o corpo lavado de água salgada, vinda de seu interior, ela, a mulher, ali na cacimba; umedece seu rosto, os braços, a lata.


A volta é lenta, agora mais pesado aquele corpo feminino leva além de água, a verdade de que a chuva pode a qualquer hora voltar, pois o sabiá do sertão, no alto da sucupira roxa, tratou de anunciar.


Sem descanso, chega a casa e coloca água em uma panela encarvoada sobre o fogão a lenha, cozinharia feijão de corda. A comida precisava ficar pronta para as crianças irem para a escola, mas antes ela anota em um pedaço de papel o que a menina mais velha compraria depois da aula, o açúcar acabou ontem; registra também um caderno vermelho para usar na associação.


A criançada vai de ônibus para a escola, ele encosta logo ali no ranchinho feito de palha de buriti pelas mães. O transporte é da prefeitura e nada além dos alunos poderia carregar, mas como deixar aquele povo andar léguas a pé até o distrito mais próximo? Na calada, vão as crianças, adultos que na volta trazem pequenas compras. Em troca, o motorista recebe uma galinha, abóbora e até convite para uma pamonhada e assim seguem.


Crianças no ônibus, mulheres na lida. Tem reunião na associação, são momentos de gargalhadas, narrativas esperadas. Decidem a comunidade e proseiam sobre a vida. Naquela Terra de Mulheres, boa parte dos homens migrou para a cidade em busca de emprego, uns trabalham na construção civil, enquanto os outros estão em estados distantes cortando cana.


Com isso, a labuta diária na comunidade é daquele grupo feminino, elas são o esteio de suas casas, a mão na terra, o colo da criança. Também são responsáveis pelas receitas imediatas que garantem comida no prato, pois por vezes, os salários dos cônjuges aparecem após o sufoco ter passado.


É a venda de galinhas, farinha, ovo, que garante a renda das famílias que ali moram, mas isso só foi possível depois da associação. As mulheres se organizaram para venderem seus produtos na feira do Distrito de São José, lá elas já têm seus fregueses, consumidores assíduos que conhecem a qualidade do produto e a força que as trazem até ali.


Todas as quartas –feiras, um carro da prefeitura vai até a comunidade para buscá-las, com elas vão os vizinhos de outras comunidades, todos juntos, amontoados aos produtos. Reclamação é o que não falta daquele transporte, mas Dona Conceição com sua sabedoria e humildade reconhece que estariam piores se não tivessem aquele pau de arara, mas contrariando a matriarca, já enviaram até um abaixo-assinado para a prefeitura rever o transporte.


Sem respostas dos gestores, as mulheres seguem com a luta dentro da comunidade, mas que reflete inclusive fora, pois já despertaram a curiosidade até da universidade. As pesquisas por lá chegaram, sondam como conseguiram se firmar como produtoras agroecológicas, a história é longa e sofrida, mas é necessário que elas contem, pois como bem afirma Maryellen[1], “nada sobre nós, sem nós”.


Como já dito, a Associação da Comunidade Terra de Mulheres se reuniria naquele dia, os encontros aconteciam debaixo de um grande Abricó de Macaco, lá onde tem uma trempe de fogão a lenha, pois nas reuniões, além de decidirem as demandas daquele coletivo, as matriarcas também repassam seus saberes e fazeres para as filhas, netas e noras. Naquela tarde, todas deixaram seus afazeres para estarem ali, pois era dia de sabão de Tingui. A produção iniciou há dias, cada mulher contribuiu com a colheita das pequenas sementes do tinguizeiro e com as cinzas, que foram colocadas em latas com pequenos furos, socadas e por fim, regadas para curtir.


Antes de iniciarem a produção do sabão, Dona Conceição, matriarca e presidente da associação, abre a reunião confirmando a pauta, e relembra que a chuva está chegando e é hora de planejarem as lavouras de milho, abóbora, feijão e gergelim.


Como conhecem o tempo da natureza, elas pensam e agem, e com a velocidade de um colibri apresentam as necessidades urgentes, a primeira é a reforma da casa de farinha, que sem a presença dos homens seria feita pelos adolescentes, mas contariam com a orientação de Joana D’Arc do Gracindo, Luzia Sozinha e Paulina do Tião. A construção deveria estar pronta daqui a seis meses, próximo da colheita da mandioca. Vale lembrar que o plantio foi feito na última lua minguante, pois conforme Dona Valdeth, em outra lua, não haveria mandioca, apenas caule e finas raízes.


Além disso, a cobertura da horta e a escassez d’água na comunidade se faziam necessário discutir. Para aquela pauta, optaram pela retirada de palha de buriti, assim não correriam o risco de ficarem sem hortaliças e verduras no período de chuva. Já, para falar sobre a falta de água, levantou uma voz potente, era Francisca, filha daquela terra, nascida e criada ali, foi com ela que este escrito se iniciou.


O corpo altivo de Francisca reconhecia a necessidade daquela discussão, pois o trajeto para a cacimba do Boqueirão já era conhecido daqueles pés ásperos com erosões visíveis. Ela carregava no olhar uma força ancestral e a coragem que faltou ao homem que a abandonou já mãe de três.


Aquela mulher sedenta propôs para a associação o “plantio de água”[2]. Dona Conceição, a presidente do coletivo feminino, assim como as demais não compreenderam, carecia então que Francisca explicasse aquela ideia que parecia sem pé e sem cabeça.


Então ela foi ao ponto, conheciam o Cerrado como a palma de suas mãos, eram guardiãs daquele lugar, só precisavam de realmente ali guardar. Francisca sabia que ela poderia nem ver o fruto daquela ação, mas pensava nos filhos, nas futuras gerações. Ao escutarem aquela proposta carregada de emoção, as mulheres abraçaram a causa. As primeiras mudas foram de Embaúba, Emburana, Jacarandá e frutíferas como Cagaita e Baru, cuidadas pelas mãos das crianças que também ajudavam a plantar e reconheciam que a paisagem começou a se diferenciar. O vento já circulava úmido até no inverno seco, a cacimba aumentou a água para dar de beber aos bichos do mato, e nas cisternas, o ‘dá fundo’ não foi necessário nos anos seguintes, pois a água não sumiu.


Sabe-se então, que naquela Terra de Mulheres, onde encontramos um corpo altivo, vestido com saias ao tornozelo ainda vive um coletivo que se renova e r-existe às dificuldades de uma vida na e para a terra.




Notas:


*Escrita literária que apresenta saberes tradicionais de um Brasil profundo.

[1] Citação feita pela representante da CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) e representante quilombola no Estado de Tocantins (COEQTO) Maryellem Crisóstomo, na aula pública: “A questão quilombola no Brasil”, promovida pela disciplina: Questão Agrária e Movimentos Sociais no Cerrado. PPGEO UEG Cora Coralina.

[2] Expressão usada pela professora indígena Silvia Krikati, representante do povo Krikati do Maranhão, na roda de conversa desenvolvida pela disciplina Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais: Decolonialidade e o Saber/ Fazer nas relações Multiétnicas e Socioculturais/ PPGEO UEG Cora Coralina.

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